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Parque Municipal Quinta do Pêgo Longo, Belas |
Tenho duas senhoras na vida. Na
verdade não as conheço, apenas existem como personagens, habitantes da minha
história. Vejo-as todos os dias enquanto conduzo.
Saio de manhã do local onde moro em direção
ao sítio do trabalho.
A minha Senhora nº 1, peço desculpa por
tratá-la de forma tão impessoal, desconheço o seu nome,
passa por mim quase no início do percurso matinal. Está a chegar a Carnaxide.
Como não tenho horários fixos, parto com vários minutos de diferença a
cada dia e assim, cruzando-me com ela mais adiante, já pude concluir que vem
dos arredores de Valejas. Sou testemunha de que percorre, bem cedo, cerca de
dois quilómetros a pé.
Quando volto para o almoço
passo pela senhora nº 1 em sentido contrário. Também ela deve ir fazer a sua
refeição a casa, neste caso percorrendo a distância a penantes. O que terá
feito toda a manhã?
É uma mulher dos seus sessenta
e tal anos, muito elegante, diria até escultural, de forma surpreendente
para a idade que aparenta. Veste a maior parte das vezes calças de licra que
lhe caem excepcionalmente bem. Se não lhe víssemos a cara facilmente
imaginaríamos estar em presença de uma moça de trinta anos no máximo. E que
elegância no trajar, no calçado de boa qualidade, no chapéu a condizer, dá
gosto apreciá-la. A cabeleira branca vem sempre bem penteada, por vezes
apanhada num puxinho que consegue manter, sabe-se lá com que truque, em
simultâneo com o chapéu. Se fosse mais alta faria lembrar uma princesa inglesa
a caminho do Royal Ascot para ver correr o seu cavalo favorito, um mimo. Reparo que na maioria das vezes vai a falar sozinha, muito direita e
decidida.
Perto do meu destino,
no início de mais uma jornada de trabalho encontro a Senhora nº 2 calcorreando
o passeio que liga Belas a Queluz. Lamento mais uma vez não poder
nomeá-la.
A Senhora nº 2 é a antítese da Senhora nº1 tirando o factor idade, que não deve divergir muito numa e noutra, e a constância na rotina pedestre.
Esta é roliça e pouco cuidada no cabelo e na toilette. Calha até a envergar, amiúde,
calças de padrão garrido com camisolas de riscas com cores divergentes, sempre com
aspecto enxolhado. Hoje vinha de croques debruadas a material felpudo.
Eu até já tive umas parecidas, bem quentinhas, mas nem de pistola apontada me
apanhariam na rua com aquilo. Ela lá vai, de saco ecológico para compras,
de xadrez azul, vermelho e branco na mão, com passo pequeno e olhar triste
pela rua fora, faça chuva ou faça sol. Cheguei a vê-la já depois do Pendão como quem vai para os Quatro Caminhos, quase a cinco quilómetros e fico a pensar porque irá tão longe fazer as
compras.
Quando saio para o almoço já a
tenho reencontrado no regresso a Belas e deito-me a imaginar que
transações terá efectuado que demorassem mais de 3 horas cabendo depois num
saco que nem sequer é grande nem denuncia vir muito cheio. Terá talvez ficado entretida a dar à língua com as vendedoras do mercado, que entretanto, não localizo na área do
meu trajecto rodoviário. Será assunto de calças? Mas porque virá então com o
mesmo olhar vazio e sombrio? Não deveria reaparecer sorrindo e florescendo? Porque não adquire
mantimentos para dois dias, folgando nos intervalos da feira? Porque
não tem o corpo tão ou mais esbelto que a Senhora nº 1 que não chega a
palmilhar tamanha distância?
O que fará com o resto do dia? Rende-se ao sofá sem mais se mexer? Come bombons pela noite fora?
E a Senhora nº 1, a que
actividades se entrega quando chega por fim a casa?
E mais perguntas me assolam, umas atrás
das outras, apoquentando-me, instigando-me a solucionar os mistérios destas
duas senhoras, sem ter meios para o lograr, sem me darem tréguas. Como se chamam? Têm família, filhos, netos, animais de estimação, reformas pequenas, máquinas de costura, libído? De
qual eu gosto mais? Em qual das duas me transformarei daqui a uma escassa década?
Terei um olhar melancólico, falarei sozinha alegre e com determinação?
E perguntar-lhes o nome, serei, algum dia,
capaz?