quinta-feira, 26 de maio de 2016

CÃO É CÃO

Beckett, o meu cão


Farto-me de rir quando oiço dizer, a propósito do bem estar animal, que hoje em dia se humaniza demasiado os bichos. Fico a pensar que estas pessoas estão a ver o filme todo ao contrário. 
Eu gosto muito de cães, sempre gostei, mas nunca confundi estes animais com pessoas. Muito pelo contrário, sei ver muito bem as diferenças.
Um dia tinha eu quinze ou dezasseis anos, andava pelo quintal dos meus avós com um cachorro ao colo, achando que seria a coisa mais natural do mundo, diz-me um tio assim:
- que andas tu a fazer com esse cão ao colo, não vês que não é uma pessoa?
- E desde quando é que me vê andar por aí com pessoas ao colo?
Foi a primeira vez que me apercebi do erro fundamental desta gente que embirra com quem gosta de bichos, da confusão que lhes vai na alma. Uma pessoa não tem de dar qualidades humanas a um animal para gostar dele. Ainda para mais quando esse animal já tem qualidades de sobra. Isso não quer dizer que não se goste de pessoas. Eu gosto de pessoas, eu vivo rodeada de pessoas. Mas ainda assim, se não existir um cão, pelo menos, na minha vida, há qualquer coisa que falta, e não descanso enquanto não preencher esse vazio.
A relação entre uma pessoa e um cão é única. Existe uma ligação, uma confiança, um consolo que não se retira de nenhuma outra. Um cão olha para nós com benevolência, com abnegação. Não lhes interessa toda a panóplia de defeitos que qualquer humano carrega consigo, como uma cruz. Desde que lhe retribuía o afecto o cão vai estar sempre do seu lado, dê por onde der.
Depois há outra coisa muito importante que o Paulo Varela Gomes descreveu numa das suas magníficas crónicas sobre animais, o estado de felicidade de um cão é muito bom de testemunhar.
Sem cães só conseguimos perceber o que é a felicidade em teoria. Porque somos, por natureza, criaturas insatisfeitas e inquietas, sempre à procura de alguma coisa que nos escapa.
Um cão, desde que tenha as suas necessidades básicas atendidas, comida, água e cama confortável, alcança a felicidade facilmente, através do afecto que lhe damos. Passamos a ter o privilégio de ver um ser feliz todos os dias quando chegamos a casa e nos recebe com a cauda a abanar e os olhinhos agradecidos. Sabemos que a vida é perfeita para ele. Pelo menos ver, ter um exemplo, da tão sonhada Felicidade. Afinal ela mora mesmo ali ao nosso lado, quando já pensavámos que talvez fosse apenas do domínio do imaginário.

sábado, 21 de maio de 2016

Babel conjugal

Azucrinava-me os ouvidos. Disse-lhe: cala-te pá, esquecendo-me que era francês. Falou toda a noite. Falhando-me.

sábado, 14 de maio de 2016

Coisas com bichos





Fico perplexa com a reação de algumas pessoas à mudança do regime jurídico que costumava considerar animais como coisas. Parece que há quem tenha apanhado um susto e reaja com um certo terror. Mas será que ainda não tinham desconfiado que os animais não eram coisas? Nem uma suspeiçãozinha pequena, uma pulguinha a trás da orelha, nada? 
Esta reação remete-me para a época vitoriana, quando o Charles Darwin apresentou o seu "A Origem das Espécies". Também aí elas e eles se passaram completamente pensando que a sua humanidade iria ser rebaixada ao nível dos macacos. Elas com medo que lhes desatasse a crescer o buço e eles em pânico de ficarem com as costas felpudas como o Tony Ramos.
Faz-nos falta, talvez, um batalhão de Carls Sagans que venham explicar em programas de televisão o quão fabulosa e única é a nossa espécie, aqui neste pequeno ponto azul, na periferia do Universo. Como é belo o nosso código genético e excitante é a nossa História ao longo de milhões e milhões de anos no Planeta. Para que não nos sintamos diminuídos quando tentamos dar às outras espécies, especialmente às que nos estão mais próximas, e que partilham connosco esta imensa Casa, uma vida melhor.
Faz-nos falta um pouco mais de autoestima, um pouco mais de confiança. E combater este absurdo medo de sermos ultrapassados em direitos por outrem.

desgostos desnecessários

uso tudo
de plástico
p´ra desgosto
basta a vida

terça-feira, 10 de maio de 2016

AMO MÃE TE



Há uns anos atrás, num livro de crónicas da Martha Medeiros, descobri um texto que me ficou na memória: "Vende Frango-se". Gostei do modo sério, isento de chacota com que a cronista abordava o tema da comunicação e da sua eficácia e eficiência, partindo deste anúncio na montra de uma churrascaria. Nunca mais consegui dizer "frango". Digo sempre "frango-se". O que é o almoço, perguntam os miúdos? Frango-se! E só quem me conhece bem sabe porquê. Aquilo que lemos e o que nos fica dessas descobertas torna-se parte da nossa intimidade.
Foi com alegria e espanto que descobri o meu "Vende Frango-se" em forma de amor filial: AMO MÃE TE. 
Demorei algum tempo a perceber a mensagem pois nem todas as perspectivas permitem ver as 3 palavras ao mesmo tempo. Primeiro lia AMO MÃE e imaginava que o TE estava por baixo do AMO escondido pela vegetação. Passados uns dias, caminhando em sentido contrário dei de caras com o TE que me pareceu fora do contexto. Mas ontem percebi tudo, a frase completa, a declaração de amor que surgiu exactamente no dia 1 de Maio, o dia em que o "meu" marco geodésico se transformou num monumento dedicado a todas as mães. Está escrito de uma forma um pouco alternativa? Sim, mas a mensagem está lá e chega-nos de forma absoluta. Cá para mim, há algures uma mãe que está a criar um poeta.


sábado, 7 de maio de 2016

poemas putas

ilustração de Apollonia Saintclair



ninguém gosta de poemas
os poemas são vistos
como as mulheres
pelo homem machista
ora impenetráveis
gerando incompreensão
e desinteresse
ora umas putas abertas
que são tomadas de assalto
consumidas
e desprezadas em três tempos

sexta-feira, 6 de maio de 2016

quarta-feira, 4 de maio de 2016

OS GATOS de FIALHO DE ALMEIDA



É um livro de contos do Fialho de Almeida com selecção e introdução de Maria Antónia C. Mourão e de Maria Fernanda P. Nunes. Já tinha lido dois livros deste autor que considero imprescindível e gostei imenso desta introdução que ocupa cerca de um quarto do livro e que nos dá a conhecer a vida e  personalidade do escritor que pelos vistos não era propriamente um santinho, como aliás ele aqui dá a entender,  neste primeiro texto da colectânea que aqui vos deixo:


"MEUS SENHORES, AQUI ESTÃO OS GATOS!"

"Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato.

Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários. 
- Um pouco lambareiro talvez perante as belas coisas, e um quase nada céptico perante as coisas consagradas; achando a quase todos os deuses pés de barro, ventre de jibóia a quase todos os homens, e a quase todos os tribunais, portas travessas. - Amigo de fazer jongleries com a primeira bola de papel que alguém lhe atire, ou seja um poema, ou seja um tratado, ou seja um código. - Paciente em aguardar, manso e apagado, com um ar de mistério, horas e horas, a sortida  de um rato pelos interstícios de um tapume, e pelando-se, uma vez caçada a presa, por fazer da agonia dela uma distracção; ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinhas de veludo; ora fingindo que lhe concede a liberdade, atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a, até a deixar num picado ou num frangalho.
Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato- isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia- porque não escolhermos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.
Razão por que nos acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca."