Lembro-me
do dia seguinte ao sufrágio que conduziu o Mário Soares à
presidência da república pela primeira vez. Tinha dezasseis ou
dezassete anos e ainda não podia votar mas aquela foi a eleição da
minha vida. Nunca mais voltaria a viver de modo tão intenso uma
campanha e um acto eleitoral.
Pois
nesse dia, na escola, numa aula de Matemática, com uma professora
que tinha sido freira, pelo menos era o boato que circulava, o
ambiente era de cortar à faca. “A Democracia é uma coisa muito
estúpida!” disse ela virada para a turma, com os olhos chispando
de raiva. Olhava para ela, estarrecida, tentado manter a compostura
pois sabia que ela falava para mim.
Meses
antes, naquela mesma aula da manhã de segunda-feira, tinha havido
festa quando o Freitas do Amaral passava à 2ª volta com larga
margem e o Mário Soares passava à rasquinha.
Em
pleno período de aprendizagem da disciplina de Matemática, alunos e
alunas, sob o olhar orgulhoso e feliz da professora, abraçavam-se
efusivamente, dando vivas e alvíssaras.
E
agora tudo tinha ido por água abaixo. Naquele tempo tinha acabado de
perceber a diferença entre Esquerda e Direita. Para surpresa minha
estava num liceu maioritariamente frequentado por filhos de gente de
Direita. As meninas usavam todas os mesmos casacos de fazenda verde
seco, giríssimos, como se sentissem uma necessidade de serem
uniformizadas. E elas e eles colavam nas roupas os autocolantes do
seu candidato, o candidato da Direita. Eu observava, isolada, calada,
a festa dos outros. Todos os jovens, mesmo os não votantes, iam aos
comícios, e prolongavam-nos no recinto escolar. Era talvez a febre
da descoberta da livre escolha dos nossos destinos, uma paixão
política que talvez só seja possível na idade da inocência.
Um dia
uma rapariga de outra turma, que conhecia só de vista, apareceu com
um autocolante do Mário Soares, que dizia apenas Soares é fixe, com
uma bola redonda amarela com um sorriso. Parecia um ícone do
Facebook. Foi um escândalo. Senti-me tão inspirada pelo gesto
heróico daquela colega que resolvi, no dia seguinte, colar um
também. O olhar da turma era fulminante mas o da minha professora de
Matemática era aterrador. Nunca mais gostou de mim. Depois daquilo
que ela considerou uma derrota pessoal, passou a tomar-me de ponta.
Insultou a Democracia e achava que eu era parte do grupo dos tais
estúpidos que deram a maioria a um presidente de Esquerda.
Mas a
Democracia não é a vitória dos espertos contra os estúpidos nem o
seu contrário.
Se ela
pudesse prever o futuro naquela época, veria que o seu candidato nem
era assim tão mais à Direita do meu. Eu veria que o meu candidato
não assim tão mais à Esquerda do candidato da minha professora de
Matemática.
Enquanto
houver Democracia podemos acreditar, apenas, que ganha a maioria e
que, haja o que houver, passados quatro anos, existe uma hipótese de
tudo poder voltar a entrar nos eixos. Se a maioria assim o quiser.
E isso
é tudo menos estúpido.
Também recordo, com alguma ironia, o dia em que as colegas da aula de dança da minha filha mais nova, terem saído da sala alvoroçadas, a meio da aula, para irem com as mães e os pais (leia-se tias e tios) ao comício do FA e a minha impávida e serena permaneceu na sala à espera que a professora, que também queria ir ao dito comício, desse a aula por finda.
ResponderEliminarEu esperava no carro por ela e diverti-me muito porque já estava a adivinhar a cena.
:)
Não se deve deitar foguetes antes da festa. É sempre útil aprender com os erros dos outros pois não iremos ter tempo de os cometer a todos.
EliminarBoa resposta. Ahahah!
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