Roberto
Bolaño era um poeta.
Ninguém
melhor que um poeta para saber que a vida dá uma mão à loucura e
outra à solidão.
Não
é por acaso que tantas das personagens, secundárias e principais,
são loucas e outras estão a enlouquecer, a ouvir vozes, a ver uma
realidade alternativa, talvez mais verdadeira que as demais.
Há
até um jovem polícia entusiasta dos métodos científicos de
investigação criminal, um racionalista, que se chama Lalo Cura (La
locura...) E nada disto é por acaso.
Temos
o poeta louco, o pintor louco internado num hospício, que corta a
mão direito para a a incorporar no seu auto-retrato, a jovem mãe
louca que abandona o lar, o professor universitário que pendura um
livro de geometria no estendal da roupa e tem uma voz na sua cabeça
que não lhe dá tréguas.
E
os que não estão loucos estão a apaixonar-se,
que no fundo é só o reverso da medalha, ou a ante-câmara da
verdadeira demência.
Deixo
uma citação de um dos loucos secundários: (não me lembro se do
poeta louco ou do pintor louco, pois escrevi isto num papel solto e
não apontei quem era):
“ O meu amigo (…) acreditava na Humanidade, portanto, acreditava
na ordem, na ordem da pintura e na ordem das palavras, pois a pintura
não se faz com outra coisa. Acreditava na redenção. No fundo, até
é possível, que acreditasse no progresso. A coincidência, pelo
contrário é a liberdade total a que estamos condenados pela nossa
própria natureza. A coincidência não obedece a leis e se lhes
obedece nós desconhecemo-las. A coincidência, se me permite a
comparação, é como Deus que se manifesta em cada segundo no nosso
planeta. Um Deus incompreensível com gestos incompreensíveis
dirigidos às suas criaturas incompreensíveis. Nesse furacão, nessa
implosão óssea, realiza-se a comunhão. A comunhão da coincidência
com os seus rastos e a comunhão dos seus rastos connosco.”
2666
é um calhamaço de mais de mil páginas, nunca tinha lido um livro
tão grande, pelo menos um deste calibre de uma só vez. Bolaño
queria que o livro fosse publicado em cinco volumes distintos para
que rendesse mais dinheiro pois sabia que tinha pouco tempo de vida
quando o escreveu e queria assegurar o futuro financeiro dos filhos.
Mas o editor encontrou tal coerência nas cinco narrativas,e
qualidade de escrita fora do comum, que achou por bem publicar
um só livro composto por cinco partes, os cinco mega-capítulos da
obra.
O
primeiro livro chama-se “ Os Críticos”. É a história de quatro
críticos literários,
três homens e uma mulher, de diferentes nacionalidades, que
constroem a sua carreira académica em torno de um misterioso
escritor alemão em vias de receber um Nobel. Existe um enorme
mistério acerca deste escritor. Os críticos, como querem desvendar
o enigma, partem numa viagem para o México, onde se supõe que o
escritor alemão se esconda. É no México que o resto do livro se
passa. Numa cidade inventada, Santa Teresa, que é a cópia
ficcionada de Juarez, onde em 1993 começa a ocorrer uma vaga de
crimes contra mulheres, fora de comum pela violência e pelo número
de vítimas.
Os
críticos, uma inglesa, um italiano, um francês e um espanhol, vão
estabelecendo uma complexa relação entre eles ao longo da
narrativa, o que traz uma forte carga erótica à história. Aliás,
este capítulo mete num chinelo, num chinelo de trazer por casa, o
tal 50 sombras de Grey.
Os
dois capítulos seguintes passam-se no México e têm como título
“Fate”, um jornalista americano enviado por um acaso à cidade
para investigar os crimes, e “Amalfitano” o tal professor
filósofo que está a ficar louco. Amalfitano tem uma filha jovem,
como as mulheres que estão a ser assassinadas a um ritmo assustador,
e na sua cabeça surge uma voz de denúncia dos horrores que por ali
se passam. Bolaño não dá de bandeja a resolução dos mistérios
mas no fim do livro, quando se pensa que nada ficou explicado se
pensarmos um bocadinho Amalfitano dá-nos a solução do problema,
ele conhece como ninguém as razões dos crimes e aponta os culpados.
Estou convencida que, apesar das mil e tal páginas, 2666 é um livro
para se ler duas vezes.
O
quarto capítulo chama-se “Os Crimes” e conta em pormenor as
cerca de 300 mortes violentas de mulheres jovens, estudantes e
trabalhadoras e as investigações respectivas, se é que se pode
chamar “investigação” ao trabalho dos polícias que acompanham
o caso, se é que se pode chamar “trabalho” à forma como que
estes profissionais lidam com as ocorrências (com a honrosa excepção
do jovem polícia Lalo Cura). É um relato exaustivo e
impressionante que, no final, nos deixa em suspenso. O que aconteceu?
Queremos saber o que aconteceu, quem matou as mulheres? O suspeito na
prisão é um bode expiatório? Porque continuam a morrer mulheres a
um ritmo alucinante apesar das detenções?
O
5º capítulo não nos ajuda a responder às perguntas. Chama-se
“Archimboldi” e conta a história do misterioso escritor alemão.
Percebemos no final porque veio ele parar a Santa Teresa. E tudo tem
a ver com os crimes. Os crimes fecham o círculo ao serem a causa da
vinda dos críticos que estão em “perseguição” do escritor que
mais parece um fantasma que quase nunca ninguém conheceu, ninguém
sabe muito bem quem é.
E
só no fim do livro, quando sabemos que não vamos ter mais
respostas, que nos pomos a pensar no problema que nos é deixado em
aberto e percebemos tudo. É só juntar os pontos. Bolaño não
facilita o trabalho mas as respostas estão todas lá. Eu sei quem
matou as mulheres e porque elas morrem. Não vou dizer porque isso é
trabalho do leitor. Sem esse esforço o livro não teria a força que
tem. É um livro verdadeiramente fenomenal.
Bolaño
é um dos maiores escritores de sempre.
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