domingo, 24 de maio de 2015

O úlitmo dia

Há um momento
em que o Tempo
permite à mulher
o seu último dia
de beleza.

beijo suicida

um beijo ensurdecedor
como um grito
um beijo que não se cala
um beijo que não obedece
um beijo de língua
afiada
cerdosa
um rugido
um beijo-coice
cavalo
selvagem
um beijo blasfemo
um beijo suicida

de corpo inteiro

pé ante pé
entrei de corpo inteiro
nas tuas mãos

quinta-feira, 21 de maio de 2015

PANTUFA

Pantufa, de férias na Beira Baixa, a olhar para o maluco do Beckett



O meu nome é Pantufa. Podem achar que é um nome vulgar mas o que foge à regra é facto de eu ter nome. Isto de um cão de rua ter nome não é para qualquer um... A maioria dos meus companheiros é anónima. Ninguém os chama, ninguém os distingue de todos os outros.
Tive sorte. Vivi quinze anos na rua. Sem dono. Mas com alguns amigos. E nesta vida de cão o que faz a diferença são os amigos.
A memória mais antiga que tenho é de ter chegado aquela rua principal de localidade suburbana que poucos sabem onde fica e os que sabem preferiam desconhecer. O local não era nada de extraordinário, mas logo no primeiro dia as pessoas foram simpáticas para mim: ofereceram-me água. Bebi com sofreguidão de cachorro que passara horas a correr. Foi no quiosque de jornais e logo ali começei a somar amizades. Do outro lado da rua cheirou-me a carne. Fui ver e era o talho. E não é que o proprietário gostou de mim? Alimentou-me. Foi muito bom. Por ali fiquei vagueando de uma lado para outro da rua. Uns davam-me festas, outros achavam-me graça ao pêlo e alguém disse que eu parecia uma pantufa e Pantufa fiquei.
Certo dia uma senhora idosa teve pena de me ver a dormir à noite enrolado num tapete à entrada do prédio e deixou-me entrar na garagem. Fez-me uma cama de papelão. Nunca tinha dormido numa coisa tão quente e confortável. Fiquei feliz. No outro dia de manhã veio muito cedo ter comigo e empurrou-me dali para fora. Confuso, lá fui eu para o meio da rua, a chover e tudo. Mas quando chegou a noite voltou a chamar-me para a cama que passou a ser minha. Só podia ficar de noite, que ela lá deveria ter as suas razões. Mas já não era nada mau.
E a vida passou vagarosa e sem grandes sobressaltos durante catorze anos, tirando uma ferida ou outra mais funda que sarava por si ou com betadine que a senhora idosa despejava no meu lombo. Não sou muito grande mas sou cão bravo e respeitado pelos outros camaradas de luta e não permito que ninguém viole as fronteiras do meu território.
Um dia custou-me muito ter de deixar a cama de papelão. Ao segundo pontapé da velhota lá abri os olhos e implorei que me deixasse dormir mais um pouco. Mas à terceira paulada de cabo de vassoura percebi que não seriam admitidas excepções e concordei em fazer-me à estrada. Não senti forças para completar a minha ronda matinal pelas paredes e árvores habituais e a meio percurso voltei para trás, procurei uma sombra e enrosquei-me numa bola. Passei a dormir mais. Cada vez mais. Reparava agora que as pessoas já não eram tão simpáticas. Não me faziam tantas festas. Depois senti a falta de me tocarem. E com espanto começei a notar que se afastavam de mim com repugnância. Fiquei triste.
Além disso perdia muito pêlo e com a avançar do Inverno sofria cada vez mais com o frio. E para piorar ainda mais a situação sentia uma comichão medonha constante, pelo corpo todo e me obrigava a coçar-me sem parar. Deixei de conseguir correr. Tinha dores ao andar. Depois eram dores no corpo todo. Perdi o interesse na vida.
Um dia, estava eu como já era costume, deitado no asfalto quente da estrada a ver se aquecia, pois estava um daqueles bonitos dias de Dezembro mas frios como lâminas aguçadas, chegaram duas moças e pegaram-me ao colo. Foi uma surpresa. Reconheci-as. Eram talvez as únicas que não se afastavam à minha passagem. Bem simpáticas. Confiei nelas. Ainda assim tive medo. Andei pela primeira vez naqueles cubículos com quatro rodas que toda a minha vida vira passar. Não durou muito a viajem. Cheguei a uma casa onde estavam vários animais. Pelo menos lembro-me de dois cães e um gato que na verdade nem vi pois estava muito encolhido dentro de uma caixa colorida. Mas o meu nariz não me engana. Fizeram-me esperar a manhã toda dentro de uma sala muito pequena e escura. Até que me vieram buscar. Um homem novo e uma mulher menos nova mas sem ser velha. Muito mais nova que a “minha” velhota. Mexeu muito em mim o que me deixou espantado. E depois molhou-me com água quente e mexeu muito mais. O cheiro que a água tinha era estranho e intenso. Ora para meu espanto soube-me bem. Fiquei mais confortável e com menos comichões. Picaram-me algumas vezes na pele mas não me importei por aí além, afinal eles falaram a bem comigo e pareciam simpáticos. Por fim deixaram-me dormir numa cama tão boa que tinha até um cobertor. Melhor ainda, no outro dia de manhã ninguém me correu a pontapé. Dormi a manhã toda. De facto dormi as manhãs todas durante um bom par de meses. Nunca imaginei que estivesse tão cansado. Fez-me bem. Veio a Primavera e eu parecia uma flor a renascer. Voltei a correr na rua, a espojar-me na relva, a brincar com as pessoas. E aqui vivo até hoje. As pessoas da minha nova casa gostam de me tocar e dão-me comida todos os dias. E eu para agradecer esta nova vida, lambo-lhes as mãos. Já passou um ano desde que aqui cheguei. Estão sempre a entrar e a sair animais. Brinco com os mais amistosos. Aos gatos, esses seres arrogantes com a mania das grandezas, nem ligo. Tenho a sorte de me esconderem dos sarrafeiros. Esses fico a ouvi-los rosnar de fúria, com o rabinho a dar-a-dar, por não me poderem chegar...
Descobri que sou um belo ruivo de pêlo comprido. Um cão feliz.

ELISA DA CONCEIÇÃO


Há pessoas que vivem no mundo das crianças toda a sua vida. Não querem crescer.
Brincam com elas de igual para igual. Assim era Elisa. Com os seus 70 anos, a sua cara enrugada e corpo em tonel, era a mais divertida companheira que eu podia imaginar. Sempre de preto, olhos pequenos de toupeira, tinha um hálito bom, um cheiro a sabão nos braços e a hortelã nas mãos e a voz parecia que ria de contentamento. Era assim que ela se realizava: sendo o centro do universo duma criança de 4 anos. Elisa era a madrasta da minha avó materna. Vivia na casa da sua enteada mais nova, a minha tia do Ribatejo que eu visitava todos os fins-de-semana. Eu gostava de todos daquela casa: da minha tia, tio, primo; e delirava com os animais que coabitavam na casa. Os cães, as cadelas, os cachorros, os gatos, as gatas e suas ninhadas. Mas quem fazia as minhas delícias era a velha Elisa com quem brincava de manhã à noite sem conseguir aborrece-la um único instante. Para mim ela era a Ti’Lisa. A minha maior amiga.
Aquela mulher palhaça era viúva e não tinha filhos. Tinha gerado já tarde um bebé que nascera morto. Era uma menina. Quando contava a história vi-a disfarçar uma lágrima. O marido fora um polícia severo que por vezes lhe batia mas por quem ela demonstrava uma devoção misturada com respeito e ternura. Eu testemunhava o seu amor cada vez que lhe pedia para me mostrar a caixinha em forma de coração que pendia do seu grosso cordão de ouro. Elisa abria a caixa, mas antes de me mostrar a cara sisuda do homem fardado de cinzento beijava-a enamorada. Após ter contemplado a foto que me alimentava a imaginação ela guardava-a novamente junto ao peito nunca sem antes lhe voltar a depositar um longo beijo. Esses eram os breves momentos sérios que tínhamos nos intervalos das nossas brincadeiras. Com ela eu podia brincar aos cavalinhos, às bonecas, aos médicos ou aos cowboys. Tudo me era permitido, até pentear-lhe a sua longa cabeleira branca após desmanchar o carrapito, e fazer-lhe umas tranças para que se parecesse com a minha boneca de trapos favorita.
A comida que me oferecia tinha um sabor mais delicioso. O pão com manteiga que me dava à boca após molhar no leite e que eu mordia, entre voltas de bicicleta à roda do quintal, tinha um gosto especial. Com ela o meu apagado apetite devido às amigdalites constantes disparava. Tudo me parecia mais interessante e alegre. O mundo era um local maravilhoso.
Elisa era a segunda mulher do pai da minha avó materna. Casara com ele já depois dos trinta e aturara esse homem estoicamente. Ele não tinha um feitio fácil. Era polícia num regime com uma autoridade severa. Educara as filhas com mão de ferro. E as duas moças tinham-lhe medo antes do respeito. Tratava a mulher com dureza. Ela era-lhe totalmente submissa. No último ano da sua vida ficara acamado. Para além das escaras dos diabetes, Elisa aguentara a senilidade ou a loucura que o fizera não a reconhecer e trocar-lhe o nome pelo o da sua primeira mulher: Maria do Rosário. Depois da sua morte abraçou o luto para o resto da vida.
Depois de mim, esta velha senhora foi amiga do meu irmão e dos dois netos da sua enteada mais nova. A todos fascinou. Os únicos seres para quem ela foi verdadeiramente encantadora. Quando chegava a puberdade despedia-se de nós imperceptivelmente e dedicava-se à criança que se seguia.
Anos mais tarde fui chamada a visita-la no hospital onde agonizava com uma doença terminal. O tumor do fígado adivinhava-se debaixo da pele esverdeada em forma de uma saliência descomunal. Sofreu durante semanas um calvário de náuseas e dores sem remédio nem alívio. Uma expiação cruel na passagem para o outro mundo de uma personagem secundária no palco da sua própria vida. E assim morreu Elisa da Conceição, a estrela mais brilhante que na infância morava no meu coração...

quarta-feira, 20 de maio de 2015

IRREVERSÍVEL





Nunca gostei tanto de ler o que alguém escreve sobre cinema.
Nunca gostei tanto de ler o que alguém escreve.
Nunca gostei tanto de ler.
Nunca gostei tanto.
Nunca gostei.
Nunca.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

preguiça

O homem assinou a foto, não vale a pena pôr legenda



Escrever cansa e eu tenho muita preguiça. Mas isso não é totalmente mau. A minha indolência funciona como um crivo de auto-censura movido por forças passivas. A maior parte dos pensamentos que me vêm à cabeça acabam por ir embora sem que me dê ao trabalho de os anotar. Só os recorrentes, os que são fruto de uma teimosia enxertada por um coice de alguma mula casmurra e que não me largam é que me obrigam a deitar mãos à obra. Contrariada, sento-me então ao computador ou puxo de uma caneta perdida no fundo de uma mala e de algum talão de compras perdido e rabisco a ideia. 
Mais tarde leio. Se for alguma coisa que preste reescrevo. A maioria vai para o lixo sem sequer guardar os valores das compras para a minha contabilidade pessoal. Preguiça pura.

elefantes

The elephants, Salvador Dali


a matrona levou o elefante
à loja de antiguidades
o elefante  pisou os nenúfares
da cristaleira penhorada
o feiticeiro virou-se contra o feitiço
desmascarando o segredo
a sopa fugiu da panela
e a pedra ia nua
a velhinha ajudou o menino
a atravessar a rua
mas o menino era mais velho
que a bengala da velha
a porta fechada
estava apenas encostada
ao ser empurrada com força
fez cair no alçapão
o intruso desprevenido:
era um elefante

lobos

The Gypsy and the Wolf by Random Highjinx



no início era o sexo
o lobo eriçado
o lombo roliço
o lobo vadio
lombo esfaimado

depois cansando-se
da inclemência da fome
da violência da fartura túmida
cresceu
até ao estiramento irreversível

da profundeza da semente
veio uma força tímida

o lobo vagueava nas ruas da cidade
o lobo vulnerável
de peito aberto às balas
o lobo ovelha
o lobo gazela
o lobo liberado da sua própria pele
no início era o sexo
agora a sede
sulcando uma brecha
em cada porta
onde alça a pata

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Prova dos nódulos


knobby Knees, Katherine Moore

Quando por ti
é por mim
posso provar
por A+P
que poemas sem préstimo
não há
descobertos
os locais secretos
entre o joelho
e a canela
zonas de difícil acesso
proibidos ao incauto turista
reservados ao íncola regular
revela-se o intuito
e o código
cai a máscara

poemas sem préstimo
haverá talvez
cerca de meia dúzia
contam-se
quase
pelos dedos da mão
posso provar-te
os dedos

domingo, 3 de maio de 2015

os gatos


argos
os gatos
não se discutem
bons
maus
arranham
com doçura
ou traição
quer se goste
ou não
gasta-se o tédio
o tempo nunca
é demais
com pulgas
sem
vergonha
gostam do cio
fogem do frio
os gatos não se castigam
quando se querem rir
ronronam