sábado, 14 de fevereiro de 2015

Derrota

ilustração de Reginald Birch para o conto de John Galsworthy: "Defeat"


Hoje não te escrevi. Não por falta de vontade, aliás nunca é. Para te escrever não basta o desejo. É preciso uma certa urgência na mensagem, uma força excepcional que vença a minha auto-censura. Não posso simplesmente dizer a primeira coisa que me venha à cabeça. As palavras têm de ter um significado para que nunca se apaguem da memória.
Ao invés de te escrever fiquei a pensar na conversa da mulher gorda. Nos seus olhos de derrota ansiosa. Os olhos, pequeninos e semi-cerrados, mais pareciam duas linhas rectas.
Sempre pensei que a derrota fosse um estado de paz. Como uma morte. Aquela mulher, no entanto, não estava em paz. Daquelas duas linhas trémulas vinha o olhar de quem nunca descansa. A sua ansiedade confirmava-se na voz. Era uma voz meio rouca, meio meiga, aflita. Aquela mulher sentada diante de mim, contava-me a sua história, a história da sua derrota, de alguém que não encontrou alívio.
Passava as mãos na cabeça da gata. O animal apesar de condescender apresentava um ar de sofrimento, de medo. A mulher, carinhosamente implacável, mexia com força na cabeça do bicho enquanto me contava a sua tragédia pessoal. Primeiro os dias felizes com o noivo, o sucesso no emprego, a vida desafogada. Tentou avançar pormenores de sintonia sexual no paraíso perdido mas auscultando o meu desconforto arrepiou caminho. 
A gata parecia ouvir a mulher com olhos de pânico. Como se mal aguentasse a repetição do relato em modo exaustivo. Inteligentes e dotados de memória de elefante os gatos jamais esquecem o que os humanos lhes dizem. Este animal sofria com a memória encalhada da dona, aquela narrativa era tudo o que escutava. E sempre que a ocasião surgia a conversa era reiniciada. Todas as pessoas representavam novas oportunidades. Aquela era a minha vez.
Ela era linda. Ela era feliz. Ele era lindo e perfeito. Iam casar. No dia do casamento ele teve um acidente de carro e morreu. O vestido de noiva ficou por estrear. Fim.
Agora ela tinha mãos papudas e papos debaixo dos olhos e cabelos longos eriçados e uma gata. Uma gata que ouvia a mesma história vezes sem conta com olhos de pânico. 
Tinham passado anos, décadas, tanto tempo e a mulher não aceitara a derrota. Podia ver-lhe a ansiedade no olhar. A aflição na voz ao falar do vestido de noiva por usar, novo. O noivo era lindo, mostrou a fotografia para eu verificar. Sim, era, disse-lhe eu consoladora. A gata miou de pânico. A mulher apertou-a contra si criando-lhe mais medo.
Por fim levantou-se lentamente e a custo. Ajudei-a a alcançar as canadianas. Andava com muita dificuldade. Coloquei-lhe a gata na caixa transportadora e acompanhei-a ao carro. Elogiou-me e desejou-me sorte. Sorte, muita sorte, é tudo o que precisamos na vida, disse, eu não a tive.
Fiquei a pensar nas palavras da mulher gorda e na gata a saltar da caixa em casa para se esconder debaixo de algum sofá. E a mulher a tentar convence-la a sair para lhe afagar o pêlo com as mãos pesadas e implacavelmente carinhosas. Imaginei a mulher a contar a história da sua vida, da sua derrota, ao homem que vem contar a luz. Depois ao homem que vem contar a água, ao carteiro, à vizinha que se acabara de mudar para o apartamento da frente, à enfermeira que lhe vai mudar os pensos dos joelhos, como quem recusa o silêncio, o esquecimento. A mulher gorda deve pensar que a repetição da história é a negação da sua rendição. De resto sabe que está derrotada. Apenas quer prolongar o fim. Não lhe interessa o alívio, a paz, a ausência de dor. Prefere a recordação em loop, a dor reproduzida ad aeternum, a memória incendiada, a renovação dos votos de quase viúva, a dilatação do momento trágico.
Mas nada disto é suficientemente importante para te escrever. Hoje, se calhar até sempre, ficarei em silêncio. Eu, ao contrário da mulher gorda, abraçei a derrota.

1 comentário:

  1. A derrota é mais sofrida quando acontece antes do "jogo" ter início. Resta o abraço para nos enrolar a memória.

    Muito bom.

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