Lembro-me
do dia em que fui fazer uma visita a trezentos quilómetros de
distância. Tinha uma saudade crónica que era como um furúnculo a
latejar sem descanso. Às tantas a bolha rebentou. Uma dor aguda é muito
mais difícil de apaziguar.
Peguei
então no carro, no mapa, no cão e fiz-me ao caminho.
A
memória, por vezes, é uma enguia escorregadia. Outras faz batota e
inventa. Neste caso é uma laranja demasiado densa, das que se
espremem e deitam pouco sumo, quase nenhum.
O dia
tornou-se inesquecível mas as imagens que dele retive são
imprecisas e incompletas, um nevoeiro.
Sei
que foi um dia feliz. Houve gargalhadas, bom humor, muitas pessoas,
tranquilidade.
Não
sei onde almocei, quantas horas demorou a minha permanência no
local. Quem se despediu de mim quando regressei à estrada.
Tenho
apenas dois ou três segundos de imagens de um dia que é importante.
Do que
me lembro como se fosse ontem é da paragem que fiz, quase a chegar
ao destino, para pedir indicações a um transeunte. Algures no meio
do campo, à beira de uma rotunda, um rapaz de sotaque ucraniano ou
russo ajudou-me a descobrir a rota certa. Preparava-me para rodar a
chave quando me tocou suavemente no vidro com os nós dos dedos.
Baixei a janela e disse-me: tem muito boa aparência. Muito
obrigada, respondi.
Fui-lhe
agradecendo em silêncio aquele estímulo de coragem nos últimos
escassos quilómetros do final da minha viagem.
E é
por estas e por outras que continuo a confiar na generosidade de
estranhos.
Da
memória desconfio cada vez mais.
Quando a memória é, ela própria, uma excrescência, faz doer quando rebenta.
ResponderEliminarProvavelmente, só mesmo alguém estranho pode apaziguar a dor.