quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Sumo de memória





Lembro-me do dia em que fui fazer uma visita a trezentos quilómetros de distância. Tinha uma saudade crónica que era como um furúnculo a latejar sem descanso. Às tantas a bolha rebentou. Uma dor aguda é muito mais difícil de apaziguar.
Peguei então no carro, no mapa, no cão e fiz-me ao caminho.
A memória, por vezes, é uma enguia escorregadia. Outras faz batota e inventa. Neste caso é uma laranja demasiado densa, das que se espremem e deitam pouco sumo, quase nenhum.
O dia tornou-se inesquecível mas as imagens que dele retive são imprecisas e incompletas, um nevoeiro.
Sei que foi um dia feliz. Houve gargalhadas, bom humor, muitas pessoas, tranquilidade.
Não sei onde almocei, quantas horas demorou a minha permanência no local. Quem se despediu de mim quando regressei à estrada.
Tenho apenas dois ou três segundos de imagens de um dia que é importante.
Do que me lembro como se fosse ontem é da paragem que fiz, quase a chegar ao destino, para pedir indicações a um transeunte. Algures no meio do campo, à beira de uma rotunda, um rapaz de sotaque ucraniano ou russo ajudou-me a descobrir a rota certa. Preparava-me para rodar a chave quando me tocou suavemente no vidro com os nós dos dedos. Baixei a janela e disse-me: tem muito boa aparência. Muito obrigada, respondi.
Fui-lhe agradecendo em silêncio aquele estímulo de coragem nos últimos escassos quilómetros do final da minha viagem.
E é por estas e por outras que continuo a confiar na generosidade de estranhos.
Da memória desconfio cada vez mais.

1 comentário:

  1. Quando a memória é, ela própria, uma excrescência, faz doer quando rebenta.
    Provavelmente, só mesmo alguém estranho pode apaziguar a dor.

    ResponderEliminar