terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Serpente





As longas gotas 
corriam cara abaixo.
Os soluços alternavam 

com palavras roucas,
serpente, serpente.
Confessavas-me 

que nunca tinhas chorado na vida.
O espanto ultrapassou 

o meu terror pelas tuas lágrimas,
meu pai.
Era a única que te fazia chorar.
Fazia-te chorar, meu pai,

que durante meio século
havias estado a salvo 

das desprezíveis
manifestações de sentimento.
Fazer-te chorar, meu pai, 

era um crime
para além do crime primordial.
Serpente, repetias.
Quando teria acontecido, 

queria imaginar.
Quando me via ao espelho nua,
talvez, numa dessas vezes,
tentando criar curvas,
criar corpo,
tentando ondular,
ser mulher.
Agora, ali estava eu,
serpente vertical,
braços pendentes
a ver a água escorrendo
pela tua face, meu pai.
Era tarde e a tua revolta tão justa,
oportuna, serpente, serpente,
meu pai.
Serpente sibilante,
víbora no próprio ninho,
exalando um forte odor
a pecado.
Expulsei-me por fim
em ziguezagues
do teu pequeno paraíso
infernal.