segunda-feira, 29 de abril de 2024

PASSIONAL

 

                


A Loira boca de cão


A Loira de má índole

burlona

duplo queixo

velha feia

boca de cão


A Loira pega

decadente

perdição minha

boca de cão


A Loira dupla face

vil traidora

bexigosa

boca de cão


A Loira inesquecível

feiticeira

língua de víbora

boca de cão

PETRICOR




 É o odor da chuva

partindo na terra preta

o coração das pedras


As perdas no corredor

da casa em cinzas

exalam uma saudade

química


Varres sem descanso

a árvore brônquica

do meu peito cármico


sexta-feira, 25 de agosto de 2023

4 POEMAS POR RASURA DO PLANISFÉRIO DE LUÍS CARMELO

 

    


                                                A VIRGINDADE DO MUNDO

I

com a suavidade de um pónei

tendão a tendão

as pessoas devoram-se

os corpos são sementes profundas

na surpresa de conquistar espaço ao espaço

o amor tem ouvido interno

alibi invertido: retrovisor de uma história perdida


um pássaro a sobrevoar o verão

 é uma única bala dividida pelos dois

arma que dispara para dentro

mar de escombros

anunciação



II

Sem linguagem haveria infinito

a solidão das cidades segreda à maneira das cegonhas:

os animais suicidam-se?

na morte deseja-se possuir uma resistência contra o nada

enfrentar o calafrio

morrer é uma abstração

talvez a mais pura



III

O teu olhar esvoaçou como os pássaros em estado de murmuração


abre-se como uma flor noturna

uma Islândia solar

uma floresta do outro lado da janela

em ascensão

a queda do outro lado do tempo


uma manhã de areia muito grossa

serpenteia as primeiras casas com fachada para o mar

a curva de ventos regulares

traz à pele a textura do momento

o sabor do sal

a grandeza da nuvem

a cegueira do grande estuário

a plaina adormecida

reconhecer-se sem eclusas e sem gramática

é uma véspera feita de ouro puro



IV

ter amado é conhecer duas mãos

um simples gesto

a exclusividade de uma memória


sobreviver a um amor perdido

à dissecação do amor

é  pairar numa cidade que se evapora




quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O TAMANHO DO MUNDO (poema de rasura do livro de António Lobo Antunes)

 




O TAMANHO DO MUNDO

 

A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite

Uma lágrima de torneira atravessa o escuro

O relógio elétrico na mesa de cabeceira a tricotar o tempo

converte o sono em mobília

Os objetos aumentam nos naperons

inclinados para mim a escutarem

Eu a juntar-me aos poucos no colchão

Tão estranho as pessoas serem uma voz

vinda do centro da terra

com o silêncio de Lisboa inteira à volta

O primeiro morcego a riscar o silêncio

com o giz do seu grito

Qual de nós sou eu?

 

Tantas cores vivas de repente em mim

O mês de abril a nascer-me por dentro

Orgulhosa de continuar a florir

assistindo aos pássaros que não poisam nunca

Gaivotas que trazem

os primeiros barcos da manhã no bico

É impossível que os mortos não andem aí à procura

Há tantas vidas em nós

para onde irá isso tudo

Qual é exatamente o tamanho do mundo

 

 

 

 

domingo, 30 de outubro de 2022

Do Lado Que Arde

 





Do lado que arde

                                escorre o nome

Do lado que arde

                                o amor à distância

Do lado que arde    

                              uma árvore a quem podaram de mais

Do lado que arde

                                um amor-problema para me situar no mistério

Do lado que arde

                              a minha falta de inclinação para a inocência

Do lado que arde

                              uma flecha aponta para o futuro

Do lado que arde

                                uma parte afunda suavemente

Do lado que arde

                                 um  nevoeiro mercurial 

Do lado que arde

                                o destino tenta a sorte

Do lado que arde

                                a morte ali a olhar

Do lado que arde                                                                                                                                                                            

                                pontapé de baliza a tentar recomeçar a vida

Do lado que arde

                                uma armadilha

Do lado que arde

                                um sabor de azeitona misturado com álcool

Do lado que arde

                                terá a verdade tripas?

Do lado que arde

                                a memória manda no mundo 



Nota: Poema de Rasura do Livro "Do Lado Que Arde" de Mónia Camacho


                      



                                    

                                

                                  

                                

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Confissão Alentejana in "De Língua e Linguística" de José Augusto Carvalho





 O conto seguinte apresenta palavras também desconhecidas pertencentes ao

dialeto alentejano, mas o leitor o entenderá como um texto em língua portuguesa. Para

melhor entendimento do texto, a própria autora apresentou a explicação das expressões

usadas, consultando o Dicionário de falares do Alentejo, de BARROS, Vítor Fernando &

GUERREIRO, Lourivaldo Martins.

CONFISSÃO ALENTEJANA

Conto de Ana R. Marques reeditado em 07-03-2009 (Recanto das Letras.

Código do texto: T 1309830)

__ Louvado seja Jesus Cristo!

__ Louvado seja sempre.

_ _ Há quanto tempo não te confessas, minha filha?


__ Vai fazer um mês, Senhor Padre.

__ Ó minha filha, então por quê? Costumas vir todas as semanas. O que te

apoquenta?

__ Senhor Padre, nem sei como lhe dizer. Anda um assunto aberrundando-me,

mas...

__ Procura-me o que quiseres, filha. Não deves ter melindres de desabafar com o

teu confessor.

__ O meu noivo, Senhor Padre... Está em alas para experimentar...O que as

pessoas fazem depois de casadas...

__ Agora cá! Mas vocês não são casados, valha-me Deus! Não podem ir contra as

leis de Deus, filha! Querem casar ou querem ajoujar-se?

__ Casar, Senhor Padre. Mas ele diz que entre noivos não haveria de ser grande

pecado.

__ Isso é lá a julgadura dele. Mas é a ele que cabe estabelecer a lei de Deus? Que

pachouvada! Tu tens de ser rabeta e ter tinório.

__ Então, como devo fazer? Não quero que ele fique alcanchofrado comigo. E,

Senhor Padre, nós estamos muito encegueirados um pelo outro. Ele anda

desinsofrido.

__ Eu entendo-te, filha. O caso está bichoso. Um homem não é de ferro, e uma

moça também não. Se não existissem esses desejos ninguém casava. Tal como

se não existisse o paladar ninguém comia e morríamos todos. Acontece que o ser

humano quando é cristão tem de seguir as boas leis de Cristo. Não nos devemos

afastar do Evangelho. Atinta nas minhas palavras, pois elas são para teu bem.

Mas para que te possa aconselhar melhor deves contar-me tudo o que vós tendes

feito durante o vosso derrete.

__ Como assim, Senhor Padre?

__ Tudo. Conta-me tudo. Já o viste à espervela? Ele toca-te?

__ Ai Jesus! Que entalo!

__ Mexeu-te nas lanteriscas? Não sejas marreta e conta-me.

__ Senhor Padre, quando estamos beijando ele quer que lhe mexa no martelinho.

Mas eu não sei se devo. Mas nunca o vi nadavau.

__ Ele é merlo mas tu terás de ser mais mérrula. Não podes albardar isso. Tal mimo

desperta os apetites do verdugo e num flaite estás em privança. Não te esqueças

que podes ficar embaraçada. Já viste que papel seria?

__ Não quero isso, Senhor Padre. Que dava um patatum à minha mãe. E o

arrecuão que o meu pai me daria até me causa agasturas.

__ Tem calma, filha. Tenta apressar a boda. Podes beijá-lo com caranço mas sem

escofiar as lanteriscas do moço. Não tomes isto como um recado. És esgalhada,

empapoilada e tens andado a aziá-las. Ele também te mexe na rola?

-- Ai, Senhor Padre!

-- Se não me contas a mim hás-de contar a quem? Dou-te bons conselhos no

sentido de evitar a gadela. Todo o homem é pirata. .Sei que não és moça alvarina.

Confia no teu confessor. É para tua boa orientação, filha. Apressa a boda. Mexeu-

te na pinta? Por cima ou por baixo dos froxéis?

-- Por baixo,l Senhor Padre...

-- Não é galinha-morta esse teu noivo, não! E enquanto isso acontecia estavas

dando-lhe galanduchas no seu romão-cego?

__ Sim, Senhor Padre...

__ Não é nenhum mata-formigas, não. Não ficaram almareados? Conseguiram

parar a tempo?

__ Sim, Senhor Padre... Mas está ficando cada dia mais difícil. Dá-me a espertina

de noite. Sinto uma calorina pelo corpo todo. E passo o tempo afofando estar com

ele outra vez.


__ Apressa a boda! Não te deixes enodoar, filha. A vila está cheia de trogalheiras

sempre à espreita. Fazem de ti uma bagaça e lá vai o noivado para o maneta.

__ Isso é que nunca! Dava-me uma travadinha que nunca mais me recompunha.

Vou ter cautelas, Padre.

__ Agora diz três Ave-Marias e o acto de contrição. Para a semana voltas cá. E

tornas a contar-me tudo.

Pequeno glossário para compreensão do conto. FONTE: BARROS, Vítor Fernando &

GUERREIRO, Lourivaldo Martins. Dicionário de Falares do Alentejo. 3.ed. Lisboa: Âncora

Editora, 2013.


Aberrundar: atormentar

À espervela: à mostra, a nu

Afofar: achar gosto antecipado a qualquer coisa

Agasturas: ânsias

Agora cá!: Não penses nisso!

Ajoujar-se: amancebar-se

Estar em alas: estar ansioso

Albardar: permitir

Alcanchofrado: zangado

Alvarina: leviana

Arrecuão: descompostura

Atintar: ver bem

Bichoso: difícil de resolver

Calorina: calor

Caranço: ternura

Derrete: namoro

Desinsofrido: impaciente

Embaraçada: Grávida

Empapoilada: bem vestida, garrida

Encegueirados: apaixonados

Enodoar: Manchar a reputação de alguém

Entalo: Aflição

Escofiar: acariciar

Esgalhada: airosa, formosa

Estar a aziá-las: estar a pedi-las

Num flaite: num instante

Froxéis: roupa interior de senhora

Gadela: cópula

Galinha-morta: tolo

Julgatura: opinião

Lantriscas. Partes íntimas

Marreta: teimosa

Martelinho: pénis

Mata-formigas: parvo

Merlo: esperto

Mérrula: astuta

Nadavau: nu

Pachouvada: asneirada

Papel: escândalo

Patatum: chelique

Pinta: vagina


Pirata: malandro

Procurar: perguntar

Recado: repreensão

Romão-cego: pénis

Rola: orgão sexual feminino

Tinório: muito juízo

Verdugo. Homem musculoso


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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Martini




 A Lua em loop

e eu rodando

atrás dela

Martini, esse combustível

fóssil

na terra rugindo

e eu coiso

em loop

assobia lá fora

o temporal à janela

vai-te embora cão

digo eu coiso

de retro Barrabás

o Martini na mão

gelo até derreter o coração

num mar de palha

ao alto as estrelas 

caladas

que nem ratos

só a rabanada de vento 

nas vidraças

o copo redondo

na conquista da boca

aberta a época de caça

aos patos voadores

no ar da tarde

a estrela da serra

 e eu coiso

no chão caída

o galo a cantar na cabeça

e à meia-noite amar

a música era o Martini

a marca dança