A Loira boca de cão
A Loira de má índole
burlona
duplo queixo
velha feia
boca de cão
A Loira pega
decadente
perdição minha
boca de cão
A Loira dupla face
vil traidora
bexigosa
boca de cão
A Loira inesquecível
feiticeira
língua de víbora
boca de cão
A Loira boca de cão
A Loira de má índole
burlona
duplo queixo
velha feia
boca de cão
A Loira pega
decadente
perdição minha
boca de cão
A Loira dupla face
vil traidora
bexigosa
boca de cão
A Loira inesquecível
feiticeira
língua de víbora
boca de cão
É o odor da chuva
partindo na terra preta
o coração das pedras
As perdas no corredor
da casa em cinzas
exalam uma saudade
química
Varres sem descanso
a árvore brônquica
do meu peito cármico
A VIRGINDADE DO MUNDO
I
com a suavidade de um pónei
tendão a tendão
as pessoas devoram-se
os corpos são sementes profundas
na surpresa de conquistar espaço ao espaço
o amor tem ouvido interno
alibi invertido: retrovisor de uma história perdida
um pássaro a sobrevoar o verão
é uma única bala dividida pelos dois
arma que dispara para dentro
mar de escombros
anunciação
II
Sem linguagem haveria infinito
a solidão das cidades segreda à maneira das cegonhas:
os animais suicidam-se?
na morte deseja-se possuir uma resistência contra o nada
enfrentar o calafrio
morrer é uma abstração
talvez a mais pura
III
O teu olhar esvoaçou como os pássaros em estado de murmuração
abre-se como uma flor noturna
uma Islândia solar
uma floresta do outro lado da janela
em ascensão
a queda do outro lado do tempo
uma manhã de areia muito grossa
serpenteia as primeiras casas com fachada para o mar
a curva de ventos regulares
traz à pele a textura do momento
o sabor do sal
a grandeza da nuvem
a cegueira do grande estuário
a plaina adormecida
reconhecer-se sem eclusas e sem gramática
é uma véspera feita de ouro puro
IV
ter amado é conhecer duas mãos
um simples gesto
a exclusividade de uma memória
sobreviver a um amor perdido
à dissecação do amor
é pairar numa cidade que se evapora
O TAMANHO DO
MUNDO
A solidão
mede-se pelos estalos dos móveis à noite
Uma lágrima
de torneira atravessa o escuro
O relógio
elétrico na mesa de cabeceira a tricotar o tempo
converte o
sono em mobília
Os objetos
aumentam nos naperons
inclinados
para mim a escutarem
Eu a
juntar-me aos poucos no colchão
Tão estranho
as pessoas serem uma voz
vinda do
centro da terra
com o
silêncio de Lisboa inteira à volta
O primeiro
morcego a riscar o silêncio
com o giz do
seu grito
Qual de nós
sou eu?
Tantas cores
vivas de repente em mim
O mês de
abril a nascer-me por dentro
Orgulhosa de continuar a florir
assistindo aos pássaros que não poisam nunca
Gaivotas que
trazem
os primeiros
barcos da manhã no bico
É impossível
que os mortos não andem aí à procura
Há tantas vidas em nós
para onde irá isso tudo
Qual é exatamente
o tamanho do mundo
Do lado que arde
escorre o nome
Do lado que arde
o amor à distância
Do lado que arde
uma árvore a quem podaram de mais
Do lado que arde
um amor-problema para me situar no mistério
Do lado que arde
a minha falta de inclinação para a inocência
Do lado que arde
uma flecha aponta para o futuro
Do lado que arde
uma parte afunda suavemente
Do lado que arde
um nevoeiro mercurial
Do lado que arde
o destino tenta a sorte
Do lado que arde
a morte ali a olhar
Do lado que arde
pontapé de baliza a tentar recomeçar a vida
Do lado que arde
uma armadilha
Do lado que arde
um sabor de azeitona misturado com álcool
Do lado que arde
terá a verdade tripas?
Do lado que arde
a memória manda no mundo
Nota: Poema de Rasura do Livro "Do Lado Que Arde" de Mónia Camacho
O conto seguinte apresenta palavras também desconhecidas pertencentes ao
dialeto alentejano, mas o leitor o entenderá como um texto em língua portuguesa. Para
melhor entendimento do texto, a própria autora apresentou a explicação das expressões
usadas, consultando o Dicionário de falares do Alentejo, de BARROS, Vítor Fernando &
GUERREIRO, Lourivaldo Martins.
CONFISSÃO ALENTEJANA
Conto de Ana R. Marques reeditado em 07-03-2009 (Recanto das Letras.
Código do texto: T 1309830)
__ Louvado seja Jesus Cristo!
__ Louvado seja sempre.
_ _ Há quanto tempo não te confessas, minha filha?
__ Vai fazer um mês, Senhor Padre.
__ Ó minha filha, então por quê? Costumas vir todas as semanas. O que te
apoquenta?
__ Senhor Padre, nem sei como lhe dizer. Anda um assunto aberrundando-me,
mas...
__ Procura-me o que quiseres, filha. Não deves ter melindres de desabafar com o
teu confessor.
__ O meu noivo, Senhor Padre... Está em alas para experimentar...O que as
pessoas fazem depois de casadas...
__ Agora cá! Mas vocês não são casados, valha-me Deus! Não podem ir contra as
leis de Deus, filha! Querem casar ou querem ajoujar-se?
__ Casar, Senhor Padre. Mas ele diz que entre noivos não haveria de ser grande
pecado.
__ Isso é lá a julgadura dele. Mas é a ele que cabe estabelecer a lei de Deus? Que
pachouvada! Tu tens de ser rabeta e ter tinório.
__ Então, como devo fazer? Não quero que ele fique alcanchofrado comigo. E,
Senhor Padre, nós estamos muito encegueirados um pelo outro. Ele anda
desinsofrido.
__ Eu entendo-te, filha. O caso está bichoso. Um homem não é de ferro, e uma
moça também não. Se não existissem esses desejos ninguém casava. Tal como
se não existisse o paladar ninguém comia e morríamos todos. Acontece que o ser
humano quando é cristão tem de seguir as boas leis de Cristo. Não nos devemos
afastar do Evangelho. Atinta nas minhas palavras, pois elas são para teu bem.
Mas para que te possa aconselhar melhor deves contar-me tudo o que vós tendes
feito durante o vosso derrete.
__ Como assim, Senhor Padre?
__ Tudo. Conta-me tudo. Já o viste à espervela? Ele toca-te?
__ Ai Jesus! Que entalo!
__ Mexeu-te nas lanteriscas? Não sejas marreta e conta-me.
__ Senhor Padre, quando estamos beijando ele quer que lhe mexa no martelinho.
Mas eu não sei se devo. Mas nunca o vi nadavau.
__ Ele é merlo mas tu terás de ser mais mérrula. Não podes albardar isso. Tal mimo
desperta os apetites do verdugo e num flaite estás em privança. Não te esqueças
que podes ficar embaraçada. Já viste que papel seria?
__ Não quero isso, Senhor Padre. Que dava um patatum à minha mãe. E o
arrecuão que o meu pai me daria até me causa agasturas.
__ Tem calma, filha. Tenta apressar a boda. Podes beijá-lo com caranço mas sem
escofiar as lanteriscas do moço. Não tomes isto como um recado. És esgalhada,
empapoilada e tens andado a aziá-las. Ele também te mexe na rola?
-- Ai, Senhor Padre!
-- Se não me contas a mim hás-de contar a quem? Dou-te bons conselhos no
sentido de evitar a gadela. Todo o homem é pirata. .Sei que não és moça alvarina.
Confia no teu confessor. É para tua boa orientação, filha. Apressa a boda. Mexeu-
te na pinta? Por cima ou por baixo dos froxéis?
-- Por baixo,l Senhor Padre...
-- Não é galinha-morta esse teu noivo, não! E enquanto isso acontecia estavas
dando-lhe galanduchas no seu romão-cego?
__ Sim, Senhor Padre...
__ Não é nenhum mata-formigas, não. Não ficaram almareados? Conseguiram
parar a tempo?
__ Sim, Senhor Padre... Mas está ficando cada dia mais difícil. Dá-me a espertina
de noite. Sinto uma calorina pelo corpo todo. E passo o tempo afofando estar com
ele outra vez.
__ Apressa a boda! Não te deixes enodoar, filha. A vila está cheia de trogalheiras
sempre à espreita. Fazem de ti uma bagaça e lá vai o noivado para o maneta.
__ Isso é que nunca! Dava-me uma travadinha que nunca mais me recompunha.
Vou ter cautelas, Padre.
__ Agora diz três Ave-Marias e o acto de contrição. Para a semana voltas cá. E
tornas a contar-me tudo.
Pequeno glossário para compreensão do conto. FONTE: BARROS, Vítor Fernando &
GUERREIRO, Lourivaldo Martins. Dicionário de Falares do Alentejo. 3.ed. Lisboa: Âncora
Editora, 2013.
Aberrundar: atormentar
À espervela: à mostra, a nu
Afofar: achar gosto antecipado a qualquer coisa
Agasturas: ânsias
Agora cá!: Não penses nisso!
Ajoujar-se: amancebar-se
Estar em alas: estar ansioso
Albardar: permitir
Alcanchofrado: zangado
Alvarina: leviana
Arrecuão: descompostura
Atintar: ver bem
Bichoso: difícil de resolver
Calorina: calor
Caranço: ternura
Derrete: namoro
Desinsofrido: impaciente
Embaraçada: Grávida
Empapoilada: bem vestida, garrida
Encegueirados: apaixonados
Enodoar: Manchar a reputação de alguém
Entalo: Aflição
Escofiar: acariciar
Esgalhada: airosa, formosa
Estar a aziá-las: estar a pedi-las
Num flaite: num instante
Froxéis: roupa interior de senhora
Gadela: cópula
Galinha-morta: tolo
Julgatura: opinião
Lantriscas. Partes íntimas
Marreta: teimosa
Martelinho: pénis
Mata-formigas: parvo
Merlo: esperto
Mérrula: astuta
Nadavau: nu
Pachouvada: asneirada
Papel: escândalo
Patatum: chelique
Pinta: vagina
Pirata: malandro
Procurar: perguntar
Recado: repreensão
Romão-cego: pénis
Rola: orgão sexual feminino
Tinório: muito juízo
Verdugo. Homem musculoso
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A Lua em loop
e eu rodando
atrás dela
Martini, esse combustível
fóssil
na terra rugindo
e eu coiso
em loop
assobia lá fora
o temporal à janela
vai-te embora cão
digo eu coiso
de retro Barrabás
o Martini na mão
gelo até derreter o coração
num mar de palha
ao alto as estrelas
caladas
que nem ratos
só a rabanada de vento
nas vidraças
o copo redondo
na conquista da boca
aberta a época de caça
aos patos voadores
no ar da tarde
a estrela da serra
e eu coiso
no chão caída
o galo a cantar na cabeça
e à meia-noite amar
a música era o Martini
a marca dança