quarta-feira, 19 de julho de 2017

Space Oddity



Imaginemos por um instante, façam-me lá esse pequeno agrado, o Neil deGrasse Tyson a ler no Facebook as declarações daquele grupo de pessoas que acredita piamente que a Terra é plana.
Eu diria que encolheria ligeiramente os ombros, abanaria desconsoladamente a cabeça duas ou três vezes e passaria adiante, para a estrela mais próxima ou mais distante, aposto que o estudo da mais longínqua lhe dará mais entusiasmo.
O que um grupo de centenas de milhares de “rednecks” escolhe acreditar por ignorância pura não tirará o sono, nem a concentração, a um astrofísico que se dedica à divulgação científica com afinco e alegria. Tyson trabalha, respira e vive para levar o conhecimento a quem o quiser receber.
Aprender é um processo activo, tem de haver uma vontade consciente e voluntária de quem recebe a informação.
Da mesma maneira a ignorância implica uma vontade activa de recusa de conhecimento. A ignorância não é sinónimo de desconhecimento.
Cada um de nós transporta um certo grau de desconhecimento que é sempre elevado em relação à quantidade de conhecimento disponível sobre uma imensidão de assuntos e que é impossível abarcar no tempo de uma vida. Desconhecer é inevitável, e acontece sem a nossa colaboração.

A ignorância, é a busca voluntária e consciente do desconhecimento. Acontece quando alguém sabe que existe uma determinada informação mas prefere manter-se longe desta. Prefere não saber. Trata-se portanto de uma escolha, uma liberdade.
Como devem calcular a ignorância pode ser por vezes útil. Ninguém pode saber tudo sobre tudo, há que fazer opções pois os nossos neurónios são finitos e convêm poupa-los.
Podemos até ter a necessidade ou o simples capricho de ignorar certas pessoas. Quem nunca?
Nem toda a gente me interessa. Eu não interesso a toda a gente. Por isso sou ignorada por algumas pessoas e não posso levar-lhe a mal. Cada um tem os seus gostos. E é assim que está certo.
Terminando este parêntesis e continuando o meu exercício de imaginação, voltemos ao Neil. Ele vai lendo barbaridades na Internet, nada de novo no reino da “Dinamarca”, e tal, quando lhe passa pela vista um discurso de um professor de física lá do burgo, com prémios recebidos, medalhas de mérito, doutoramentos, pós-graduações aos magotes, reconhecimento unânime dos seus pares, em que este afirma que a terra é plana, descobriu em sonhos a noite passada, jurando a pés juntos ser verdade, verdadinha, que eu morra aqui e tudo.
Se calhar, desta vez, não se lhe encolherão os ombros, nem a cabeça abanará dolentemente. Talvez as rugas da testa se tornem mais sulcadas e os lábios contritos de preocupação. Um físico que apregoa uma mentira está a propagar um fogo na floresta do conhecimento e a impedir que as pessoas que buscam a sombra fresca e reconfortante da verdade científica a possam alcançar.
Estou a ver o deGrasse a enfiar o seu equipamento de bombeiro, apanhar a sua mangueira e em segundos ficar pronto para a luta contra o fogo ardente da idiotice. Vejo-o até a ligar o seu SIRESP, felizmente, neste caso, um SIRESP amigo e eficaz: o Bill Maher, o John Oliver, o Stephen Colbert e os jornalistas em geral para desmascarar o Físico-impostor ou o Físico-enlouquecido, não sabemos mas para o caso vai dar igual.
E assim, o Neil Tyson vai usar a melhor arma contra as chamas negras da irracionalidade: a palavra, o veículo do pensamento inteligente do Homem. Se não bastar a palavra, venha o canhão maior: a Matemática.
Se nada disto der certo perguntem ao Major Tom, ele sabe, ele esteve lá.

domingo, 16 de julho de 2017

UM POEMA DE FERNANDO PINTO RIBEIRO





SALMO
                                               a João Bigotte Chorão.
Estou morto.

Mas a vida
lambe a minha pele em labaredas.
Sou noite.
Mas o dia
põe-me nos lábios papoilas
e coroa-me de espigas o cabelo.
Ceguei.
Mas a luz
vem poisar-me sobre as pálpebras
outras tantas borboletas inquietas.
Não oiço.
Mas o eco do silêncio
canta o hino imenso que eu não posso.
Não respiro.
Mas aspiro o alento
da maresia no vento.
Não sinto.
Mas pressinto: a minha alma arde
e uma chaga floriu na minha carne.
Não choro.
Mas tremem estrelas cadentes
nas lágrimas pendentes que sustenho.
Não canto.
Mas sopro nuvens
no pó que levanto.
Não ando.
Mas todo o meu espírito
vadia sem folga nem descanso.


Não durmo.
Hiberno: verme     esvurmo limo e lama
no fosso em que me enfurno
aninho e faço a cama.
Não amo.
Sobre a seta quebrada no meu peito
raiva uma fonte de sangue
a incendiar a sede     a incinerar a fome
dos homens     dos bichos     das florestas.
Não sonho.
Mas a fé
faz da esperança e da saudade
sentinelas do sepulcro
onde     vivo     o meu coração jaz
pisado por cavalos em tumulto.

Estou morto.

Mas o sol explode
a luz esplende
em plena primavera
neste corpo

que me prende

e me suspende

absorto.

sábado, 24 de junho de 2017

Um Bentley ao Batráquio




Vai de Bentley, o batráquio
Corre a estrada qual ciclone
Meio milhão não é prejuízo
E dá um estilo à Stallone
 
Por ajuste secreto responde
Alegadamente picou o anzol
Vejamos o que debaixo esconde
Dos campos sintéticos do futebol

Acelera veloz p'ró Caracas
O teatro do centro refundado
É verde alpino, é do caraças
Não, não é dele, é emprestado

Um batráquio num Bentley
Imagem que a ninguém doa
Dúvidas responde perante a Lei
É um senhor, será pessoa?









sexta-feira, 23 de junho de 2017

Lições

Da vida recebo toda e qualquer lição.
Reservo-me o direito de escolher os mensageiros-professores.

Doutor Tempo



Um dia destes
sofrerei
a última
e cruenta
transformação.
O rei dos especialistas
sem bisturi opera,
o maior cirurgião.
Deixarei por fim
de ser mulher.
Velha apenas.

Onde está o Bebé?



Ilustração de Edward Gorey


nem o amor de mil homens
quanto mais de três
ou quatro
e mais sete
amantes por fora
a morrer à migua
porque não foi suficiente
o do primeiro
quando era preciso
o papá
que pena
mais
uma bebé estragada
por falta de mimos









protagonista


Gloria Swanson and a lion pose for "Male and Female."


a artista 
consagrada doutra era
caiu no casting
para papel secundário
digno apesar de curto
útil em fim de carreira
afinal era de figurante
quis fugir horrorizada
mas usou dos artifícios
do Métier
contendo-se
lembrando-se
também o Hitchcok
e o Stan Lee 
se divertiram
figurando em filmes
onde outras estrelas  
brilharam
assim
retocando 
a maquilhagem
sorriu
atuou
saiu
de cena
altiva
serena
ninguém viu