terça-feira, 10 de maio de 2016

AMO MÃE TE



Há uns anos atrás, num livro de crónicas da Martha Medeiros, descobri um texto que me ficou na memória: "Vende Frango-se". Gostei do modo sério, isento de chacota com que a cronista abordava o tema da comunicação e da sua eficácia e eficiência, partindo deste anúncio na montra de uma churrascaria. Nunca mais consegui dizer "frango". Digo sempre "frango-se". O que é o almoço, perguntam os miúdos? Frango-se! E só quem me conhece bem sabe porquê. Aquilo que lemos e o que nos fica dessas descobertas torna-se parte da nossa intimidade.
Foi com alegria e espanto que descobri o meu "Vende Frango-se" em forma de amor filial: AMO MÃE TE. 
Demorei algum tempo a perceber a mensagem pois nem todas as perspectivas permitem ver as 3 palavras ao mesmo tempo. Primeiro lia AMO MÃE e imaginava que o TE estava por baixo do AMO escondido pela vegetação. Passados uns dias, caminhando em sentido contrário dei de caras com o TE que me pareceu fora do contexto. Mas ontem percebi tudo, a frase completa, a declaração de amor que surgiu exactamente no dia 1 de Maio, o dia em que o "meu" marco geodésico se transformou num monumento dedicado a todas as mães. Está escrito de uma forma um pouco alternativa? Sim, mas a mensagem está lá e chega-nos de forma absoluta. Cá para mim, há algures uma mãe que está a criar um poeta.


sábado, 7 de maio de 2016

poemas putas

ilustração de Apollonia Saintclair



ninguém gosta de poemas
os poemas são vistos
como as mulheres
pelo homem machista
ora impenetráveis
gerando incompreensão
e desinteresse
ora umas putas abertas
que são tomadas de assalto
consumidas
e desprezadas em três tempos

sexta-feira, 6 de maio de 2016

quarta-feira, 4 de maio de 2016

OS GATOS de FIALHO DE ALMEIDA



É um livro de contos do Fialho de Almeida com selecção e introdução de Maria Antónia C. Mourão e de Maria Fernanda P. Nunes. Já tinha lido dois livros deste autor que considero imprescindível e gostei imenso desta introdução que ocupa cerca de um quarto do livro e que nos dá a conhecer a vida e  personalidade do escritor que pelos vistos não era propriamente um santinho, como aliás ele aqui dá a entender,  neste primeiro texto da colectânea que aqui vos deixo:


"MEUS SENHORES, AQUI ESTÃO OS GATOS!"

"Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato.

Ao crítico deu ele, como ao gato, a graça ondulosa e assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários. 
- Um pouco lambareiro talvez perante as belas coisas, e um quase nada céptico perante as coisas consagradas; achando a quase todos os deuses pés de barro, ventre de jibóia a quase todos os homens, e a quase todos os tribunais, portas travessas. - Amigo de fazer jongleries com a primeira bola de papel que alguém lhe atire, ou seja um poema, ou seja um tratado, ou seja um código. - Paciente em aguardar, manso e apagado, com um ar de mistério, horas e horas, a sortida  de um rato pelos interstícios de um tapume, e pelando-se, uma vez caçada a presa, por fazer da agonia dela uma distracção; ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinhas de veludo; ora fingindo que lhe concede a liberdade, atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a, até a deixar num picado ou num frangalho.
Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato- isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia- porque não escolhermos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.
Razão por que nos acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca."

sábado, 30 de abril de 2016

profissional do vício


O profissional de saúde
proibiu o vício
que faz eclodir duas montanhas
no meu peito
à velocidade de um comboio chamado contágio
e congrega espasmos e medos
na sobrecarga dos músculos
o vício que eriça o ventre
o vício que se propaga na volta
correio que a saliva traz

que exagero
ó senhor profissional
que excesso zelo
este é apenas um singelo vício
inocente no impacto estrondoso
imponente sim
e no entanto doce

ainda está por vir o vício
que me há-de matar
se for outro que não o maior de todos
e haverá maior vício
que viver?













terça-feira, 26 de abril de 2016

Histórias para não contar




Antigamente tinha sempre muitas histórias para contar. Por isso escrevia. Escrevia para mostrar aos outros o que me tinha acontecido ou o que via acontecer à minha volta. Escrever era revelar. Como na Fotografia.
Agora a tarefa tornou-se mais complicada. Quanto mais vivo mais tenho o que escrever e menos me lembro dos pormenores. Agora que existe uma história, a minha história, e a ambição de a contar, veio a memória e baralhou-me os capítulos. O tempo roubou-me as certezas e tudo se apresenta trémulo, desfocado, duvidoso. Entre o que aconteceu e o que consigo lembrar não imagino onde fica a verdade.
Talvez por isso tenha começado a escrever poesia. A poesia serve mais para esconder do que para contar. E o que tenho para colocar na página são coisas ocultas, as quais, eu própria, só consigo alcançar de forma parcial.