Speak Low: espectáculo da companhia de Wim Vandekeybus |
Para lá da janela, uma lágrima branca vem escorrendo das nuvens: um rasto de avião que desce à terra. É a maneira que o céu tem de chorar num dia luminoso e ameno de inverno.
A rapariga acordou há pouco e lembra-se que faz um mês que o homem desapareceu. E com ele quase todos os vestígios da sua presença.
"Fala-me baixinho, querido, fala-me baixinho, os nossos dias de verão foram murchando cedo demais."
As suas palavras já não a inundam, diariamente, por todas as frentes: cartas, mensagens, publicações, telefonemas, ou presencialmente sob a forma de monólogos, discursos e até sermões.
Agora, todos os sinais se apagaram. Impera o silêncio no quarto. O planisfério na parede em frente à cama é um mundo sem som. O exército de palavras bateu em retirada, derrotado.
A rapariga recorda um tempo de prazer, oferecido pela sonoridade das frases curtas sussurradas ao ouvido na cama.
A voz do homem, uma voz de peito, densa e encorpada, ampliava-lhe o desejo até ao arrebatamento final.
Um dia, por um qualquer motivo obscuro, os ouvidos não lhe devolveram a sensação de calor daquela voz redonda e escura. Estava surda para o ruído desse amor. Quebrara-se o encanto.
"Fala-me baixinho, o nosso momento vai deslizando veloz, como barcos à deriva somos varridos tão depressa."
Uma legião de cartas lhe enviou então, o homem apanhado de surpresa, tentando resgatar o feitiço.
A rapariga resistia a ler as epístolas.
Longas missivas de parágrafos fortes e imponentes como montanhas vinham em auxílio dos vocábulos orais, irmãos do efeito acústico gorado. Ondas de texto atacando por vagas, sonhando provocar na imaginação dela o simulacro hipnótico dos murmúrios amorosos.
Tinta gasta em vão.
A destinatária desistia de descodificar os signos suplentes. A escrita não foi capaz de excitar como as palavras aladas. Pequenas pombas de ar que voavam do ouvido ao seu refúgio secreto.
"O tempo é tão velho e o amor tão breve. O amor é ouro puro e o tempo é um ladrão"
Ficava a olhar aquelas compactas muralhas de texto, apreciando-lhes a consistência sólida, a robustez, a tenacidade. Imaginava pequenas brechas nesses sólidos muros, construídos vocábulo a vocábulo como tijolos destemidos, teimosos. Desconfiava que haveria de existir um ponto fraco naquela construção magnífica por onde a estrutura começaria a ceder desamparada, até sucumbir no chão.
Adiava a implosão, a leitura, a confirmação do fim.
" Estamos a ficar para trás, querido. A cortina desce e tudo acaba depressa demais. Baixinho, fala-me baixinho."
Faz hoje um mês que o homem desapareceu a seu pedido, a rapariga prepara-se para conhecer a primeira carta.
O dia abriu um sorriso de finos cirros. A rapariga desiste da leitura, deixa o quarto, vai em busca da resposta a uma última pergunta.