O filme começa com as imagens do interior
de uma carrinha da Polícia vazia. E lêem-se as seguintes legendas:
2011: A Revolução Egípcia põe
fim a uma presidência de 30 anos.
2012: O Recém-eleito Presidente
é membro da Irmandade Muçulmana
2013: Milhares de manifestantes
revoltam-se contra o novo Presidente nas maiores manifestações jamais vistas no
Egipto.
Três dias depois é deposto
pelos militares.
Nos dias seguintes, a Irmandade
Muçulmana e os apoiantes dos militares confrontam-se por todo o país. Este é um
desses dias.
Podíamos traduzir Clash por
"O Confronto"
Tudo o que se vai ver durante
quase duas horas é filmado de dentro desta carrinha da Polícia. As cenas que se
passam no exterior, nas redondezas são nos dadas a ver através das janelinhas
da viatura. Ainda assim o filme agarra-nos de uma maneira inacreditável. Vi
duas vezes neste fim-de-semana. E marcou-me.
A história começa quando dois
jornalistas (Adam e Zein) são presos e colocados na carrinha. Adam tem dupla
nacionalidade americana e egípcia.
O ambiente nas ruas é de grande
agitação e violência e os dois homens resolvem pedir ajuda a alguns
manifestantes pois os guardas são chamados para longe, por momentos.
Eles gritam que estão presos
por engano e pedem para fazer um telefonema. Uma mulher resolve parar para
ajudar e o grupo segue-a.
Quando percebem que são
jornalistas a coisa muda de figura. Todos os insultam aos gritos e atiram
pedras contra a carrinha. Nisto chegam os guardas e nem sequer ouvem que os manifestantes
estão do lado deles: prendem-nos pelos desacatos. Vai tudo dentro, para o pé
dos jornalistas que tentavam agredir. A mulher, no entanto, consegue fugir.
Os presos são: O marido da
mulher que parou para tentar ajudar e depois foge, o seu filho (cerca de 13
anos), dois velhotes, 3 jovens de cerca de 20 anos, dois deles são melhores
amigos, e um homem que virá a descobrir-se que é um sem-abrigo.
A mulher, Nagwa, volta para
trás e exige ser presa para ficar junto do filho. Os militares não querem prendê-la,
mas ela não lhes dá muita margem de manobra e começa a atirar pedras à carrinha
até que eles lhe fazem a vontade.
E dentro da carrinha começam
todos a bater e a insultar os jornalistas pois acusam-nos de serem traidores e
cobardes e de terem apoiado a Irmandade Muçulmana. Quando o Adam diz que é
americano ainda é pior, e pelos mesmos motivos, dizem que os americanos deram
cobertura à Irmandade Muçulmana. Uma balbúrdia! O engraçado é que Adam, às
tantas é acusado de ser um radical por ter barba e ele responde: mas vocês
também têm barba! De facto, um dos jovens e o sem-abrigo têm barba e talvez ao
darem conta do ridículo lá se acalmam.
A carrinha avança então pelas
ruas. Um dos jovens tira um telemóvel da meia e logo todos querem fazer uma chamada
para pedir ajuda. Adam pede para ligar à embaixada americana e logo um dos mais
velhos reclama que não pretende ser salvo pelos americanos. Nagwa, que, bem
vistas as coisas, é quem lidera o grupo, dá luz verde para o jornalista ligar
aos americanos, mas este acaba por confessar que estes só o iriam ajudar a ele
e mais vale deixarem o outro jovem ligar ao seu tio que é General e que sendo
assim pode livrar todo o grupo daquele imbróglio. Mas é um telefonema sem
sucesso nenhum. Nisto a carrinha trava e o puto deixa cair o telemóvel que se
parte. Já estava tudo a correr tão bem...
Entretanto para piorar bem mais o
dia o veículo dá de frente com uma manifestação violentíssima dos apoiantes da
Irmandade Muçulmana e desse confronto juntam-se aos presos mais meia dúzia de
pessoas, desta vez radicais a sério, e por isso inimigos dos primeiros. E então
começa uma luta terrível. Murros, pontapés, sangue e tudo. Um confronto na
carrinha, dentro do confronto no país Mais uma vez Nagwa salva a situação pedindo
ajuda aos militares, que acalmam as hostes com uma mangueirada de água.
O jornalista protesta com o
chefe dos guardas pela situação absurda de inimigos presos no mesmo espaço e
acaba algemado a uma janela. Ninguém curte jornalistas, muito menos americanos.
Com o avançar da história vamos
ficando a conhecer cada elemento de cada fação. Na Irmandade Muçulmana existe
uma adolescente de 14 anos muito aguerrida que arrastou o pai velhote para a
confusão, um gordo que viaja com um tacho na cabeça e é muito engraçado, uma
série de homens fanáticos que não deixam de revelar aqui e ali a sua
humanidade. Eles estão em polos opostos, mas em situações limite não deixam de
se unir para tentar sobreviver. As condições da carrinha vão piorando à medida
que o dia se torna mais quente. Sem água e sem instalações sanitárias eles
passam um mau bocado, fazem turnos à janela para respirar. E há momentos comoventes.
Apetece-me contar mais mas não o vou fazer. O melhor do filme está daqui em
diante. Nagwa é a protagonista num filme em que não se espera protagonismos.
Li as críticas ao filme e
achei-as absurdas. Dizem que os diálogos são parvos pois há momentos em que
eles dizem piadas e falam de coisas supérfluas. Aquilo é gente que percebe
muito cinema, mas da vida não sabe nada. Aquelas pessoas tinham pouca coisa à
mão para sobreviver. Tinham uma garrafa de plástico para urinar e sentido de
humor para descomprimir o medo da morte que estava à espreita. Numa das cenas
mais duras do filme eles ouvem morrer os presos de uma carrinha que estaciona
ao lado da deles e está superlotada e tem a porta fechada por ordens
superiores. Há um militar que tenta abrir a porta para deixar entrar o ar e não
consegue e quase é executado por um superior.
Falar de futebol, ouvir o gordo
cantar uma canção ridícula e rir da situação desesperada em que se encontram é
do mais humano que podiam fazer.
Outra discordância: dizem os críticos que
a posição do realizador é a mesma da dos jornalistas que se recusam a escolher
um dos lados. Não, meus amigos, ao dar o protagonismo a Nagwa o realizador está
a escolher um dos lados. Se fosse simpatizante da Irmandade Muçulmana jamais aquela
mulher seria a mais corajosa, a mais inteligente, a mais digna de respeito, e a
que soube protestar com os militares e com isso salvar a vida a todos os que
estavam na carrinha. Por diversas vezes. O lado do realizador é claro. Ainda
assim mostrou a face humana dos fanáticos. E mostrou também a faceta animal,
sedenta de sague, da turba de apoiantes dos Militares. A guerra é sempre suja.
Duas horas dentro duma carrinha
da Polícia e nunca o filme se torna chato. Os últimos 20 minutos são muito
dramáticos. Ao grupo ainda se junta um dos militares que os estão a guardar
desde início e que fica ferido e tem de se refugiar. Nagwa ainda percebe que
ele é cristão e por isso corre duplo perigo e todos o tentam ajudar a esconder
a sua identidade religiosa.
É uma história emocionante até
ao último segundo e não vai acabar bem para todos. Quem se irá salvar?
Agora não conto: vejam.