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ilustração de Frédéric Forest |
Ele reclama. Chama o seu nome. Ela pára, volta-se para ele, à saída do quarto, mão na porta, à espera. Ele tenta articular uma palavra, uma frase jocosa e erudita mas desiste sem dizer nada. Ela abre a porta. Ele volta a chamá-la. Ela estaca ao nível da ombreira da porta e espera.
- Não vás ainda.
-Diz lá então.
-Não sei que te diga mas peço-te um pouco mais de tempo.
-Para quê?
-Para falarmos.
-Então fala.
-Não sei o que queres que te diga.
- Eu não quero que me digas nada, és tu que parece que queres dizer alguma coisa.
- Muita coisa, eu quero dizer muita coisa. Fui eu que falhei, é certo. mas não foi por mal, não foi por querer.
-Sim, e o que adianta isso agora? Já tomaste a tua decisão. E eu já acatei essa mesma decisão.
- E se eu voltasse atrás...
-Que lata! Que grande lata. Não, não vais voltar atrás, porque eu não vou andar aqui para trás e para frente ao sabor dos teus caprichos. Já me julgaste e condenaste e agora vou cumprir a sentença proferida. Sem apelo e sem recurso, e quanto mais rápido o tempo começar a contar melhor, mais depressa me vejo livre de...
-De mim, era isso que queria, afinal de contas, deste-te a este trabalho todo para me veres pelas costas. Tinha sido mais fácil se tivesse sido sincera e...
-Tretas! Sabias que eu não estava bem, nada estava bem e fingiste sempre, não querias ouvir, adiaste sempre as conversas, nunca dava jeito, nunca era o tempo certo, porque havia muita coisa importante a acontecer e não dava para parar e falar sobre assuntos desconcertantes, era tudo muito muito desconcertante e eu... eu fui deixando andar, adiando também, fui-me fechando na minha concha, fazendo a minha vida... isolando-me...
-Não lhe chamaria isolamento, propriamente dito...
-Foi isolamento sim, foi isolamento. E o isolamento leva à carência e a carência leva ao desejo e aconteceu, aconteceu-me e nada posso fazer para voltar a trás e desfazer o que fiz e se pudesse nem sei se queria desfazer!
- Está tudo bem então, foi bom para ti, ao menos agora nem preciso de perguntar...
-E quando é que te lembraste de perguntar?
- Nunca, de facto, tens razão, já disse que fui eu a errar
-Não, não te finjas de sonso, tu não te consideras culpado de nada. aqui a rameira sou eu.
-Nunca te disse isso!
-Não, não dizes, é demasiado educado e polido, não desces tão baixo. Não dizes mas pensas e eu até vejo os teus pensamentos como se congelassem no ar, no balão gigante, bem por cima da tua cabeça: RAMEIRA. Não é assim que me classificas? Não é este o termo erudito para puta, o termo clássico?
-Não faças isso, vamos conversar...
-Mais ainda? Não me dissestes já tudo como ironia primeiro, depois com sarcasmo, depois com mágoa, depois com raiva, depois com fúria louca... Já ouvi de tudo e de todas as maneiras, já chega.
Vou-me embora, vou expiar a culpa e tentar um dia, um dia quem sabe... possa fazer tudo diferente, tudo muito mais limpo...
-Desculpa-me, desculpa-me, eu sei que também sou culpado, desculpa-me...
- Nem sei se estás a ser sincero...
-Duvidas de mim? Alguma vez te menti?
-A ausência de mentira não implica sinceridade. Sabes bem disso, és inteligente.
-Que importa isso, não fui suficientemente expedito, suficientemente intuitivo, ou possessivo, talvez...
-Enterraste a cabeça na areia e recusaste falar, foi só isso. De resto não te faltam qualidades.-
-Quais? Diz uma.
-Tu és um homem extraordinário...
-Por isso me traíste com outro.
-Pois, deve ter sido, sou maluquinha e foi isso, não suporto homens bons.
-Então o que foi? Se sou assim tão bom...
-Não és assim tão bom, és extraordinário mas não assim tão bom, tens defeitos, muitos defeitos e eles fizeram-se notar e eu não consegui lidar com eles da melhor forma...
-Então afinal esta traição aconteceu pelos meus ou pelos teus defeitos?
-Pelos meus, agora adeus e até um dia destes. Felicidades.
-Não vás!
-Vou. Aliás tu não precisas de mim para nada, nunca precisaste. Nem de mim nem de ninguém, Tu precisas da ideia de uma mulher, precisas de uma mulher no teu passado para teres material de escrita. Por isso até te estou a fazer um favor. Ficas com a tua história triste e a tua melancolia agora plenamente justificada, quase de papel passado, digamos assim.
-Não digas asneiras!
-Na mouche diria eu, consegui pôr o dedo na ferida. Se começar a escarafunchar muito até vejo que fizeste tudo de propósito, deste trela, fizeste-me apaixonar, depois começaste a cortar trela, a deixar-me à toa, tudo para me destabilizar e entrar em abstinência...
-Que disparate, não fiz tal coisa, estás a virar o bico ao prego. Foste com outro porque quiseste e traíste-me e mentiste-me e foste uma autêntica cabra por me esconderes tudo, eu é que descobri...
-Adeus, tens razão, para quê falar do assunto, chorar sobre leite derramado, adeus, desculpa, desculpa, tens razão...
-Não vás.
-Pára! Pára e deixa-me ir embora! Não quero continuar a alimentar esta tortura. Não tenho mais nada a fazer aqui, deixa-me!
-Não, vamos falar...
-Não temos feito outra coisa durante esta semana toda. Não aguento mais, quero parar com isto, é muito massacre, tenho a cabeça em água.
-Tens razão, tens razão, vamos fazer uma trégua, entra, senta. Calma, vamos ter calma, parar de bater sempre na mesma tecla. Vamos ficar em silêncio, isso, senta-te, Vamos dar uns minutos de silêncio.
-Não sejas condescendente, detesto quando és condescendente.
- Não, pára, a sério, vamos dar uns minutos, nem que sejam uns minutos de paz. Por favor.
-Está bem, eu sento-me, tens um copo de água?, tenho a boca seca. Isto é palavras a mais.
-Sim, vou buscar, espera um bocadinho.
Ela sai assim que ele entra na cozinha.
Ele chega de copo na mão e vê a sala deserta.