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ilustração de Reginald Birch para o conto de John Galsworthy: "Defeat" |
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Hoje não te escrevi. Não
por falta de vontade, aliás nunca é. Para te escrever não basta o
desejo. É preciso uma certa urgência na mensagem, uma força
excepcional que vença a minha auto-censura. Não posso simplesmente
dizer a primeira coisa que me venha à cabeça. As palavras têm de
ter um significado para que nunca se apaguem da memória.
Ao invés de te escrever
fiquei a pensar na conversa da mulher gorda. Nos seus olhos de
derrota ansiosa. Os olhos, pequeninos e semi-cerrados, mais pareciam
duas linhas rectas.
Sempre pensei que a
derrota fosse um estado de paz. Como uma morte. Aquela mulher, no
entanto, não estava em paz. Daquelas duas linhas trémulas vinha o
olhar de quem nunca descansa. A sua ansiedade confirmava-se na voz.
Era uma voz meio rouca, meio meiga, aflita. Aquela mulher sentada
diante de mim, contava-me a sua história, a história da sua
derrota, de alguém que não encontrou alívio.
Passava as mãos na cabeça
da gata. O animal apesar de condescender apresentava um ar de
sofrimento, de medo. A mulher, carinhosamente implacável, mexia com
força na cabeça do bicho enquanto me contava a sua tragédia
pessoal. Primeiro os dias felizes com o noivo, o sucesso no emprego,
a vida desafogada. Tentou avançar pormenores de sintonia sexual no
paraíso perdido mas auscultando o meu desconforto arrepiou caminho.
A gata parecia ouvir a
mulher com olhos de pânico. Como se mal aguentasse a repetição do
relato em modo exaustivo. Inteligentes e dotados de memória de
elefante os gatos jamais esquecem o que os humanos lhes dizem. Este
animal sofria com a memória encalhada da dona, aquela narrativa era
tudo o que escutava. E sempre que a ocasião surgia a conversa era
reiniciada. Todas as pessoas representavam novas oportunidades.
Aquela era a minha vez.
Ela era linda. Ela era
feliz. Ele era lindo e perfeito. Iam casar. No dia do casamento ele
teve um acidente de carro e morreu. O vestido de noiva ficou por
estrear. Fim.
Agora ela tinha mãos
papudas e papos debaixo dos olhos e cabelos longos eriçados e uma
gata. Uma gata que ouvia a mesma história vezes sem conta com olhos
de pânico.
Tinham passado anos,
décadas, tanto tempo e a mulher não aceitara a derrota. Podia
ver-lhe a ansiedade no olhar. A aflição na voz ao falar do vestido
de noiva por usar, novo. O noivo era lindo, mostrou a fotografia para
eu verificar. Sim, era, disse-lhe eu consoladora. A gata miou de
pânico. A mulher apertou-a contra si criando-lhe mais medo.
Por fim levantou-se
lentamente e a custo. Ajudei-a a alcançar as canadianas. Andava com
muita dificuldade. Coloquei-lhe a gata na caixa transportadora e
acompanhei-a ao carro. Elogiou-me e desejou-me sorte. Sorte, muita
sorte, é tudo o que precisamos na vida, disse, eu não a tive.
Fiquei a pensar nas
palavras da mulher gorda e na gata a saltar da caixa em casa para se
esconder debaixo de algum sofá. E a mulher a tentar convence-la a
sair para lhe afagar o pêlo com as mãos pesadas e implacavelmente
carinhosas. Imaginei a mulher a contar a história da sua vida, da
sua derrota, ao homem que vem contar a luz. Depois ao homem que vem
contar a água, ao carteiro, à vizinha que se acabara de mudar para
o apartamento da frente, à enfermeira que lhe vai mudar os pensos
dos joelhos, como quem recusa o silêncio, o esquecimento. A mulher
gorda deve pensar que a repetição da história é a negação da
sua rendição. De resto sabe que está derrotada. Apenas quer
prolongar o fim. Não lhe interessa o alívio, a paz, a ausência de
dor. Prefere a recordação em loop, a dor reproduzida ad
aeternum, a memória incendiada, a renovação dos votos de quase
viúva, a dilatação do momento trágico.
Mas nada disto é
suficientemente importante para te escrever. Hoje, se calhar até
sempre, ficarei em silêncio. Eu, ao contrário da mulher gorda,
abraçei a derrota.