sexta-feira, 25 de agosto de 2023

4 POEMAS POR RASURA DO PLANISFÉRIO DE LUÍS CARMELO

 

    


                                                A VIRGINDADE DO MUNDO

I

com a suavidade de um pónei

tendão a tendão

as pessoas devoram-se

os corpos são sementes profundas

na surpresa de conquistar espaço ao espaço

o amor tem ouvido interno

alibi invertido: retrovisor de uma história perdida


um pássaro a sobrevoar o verão

 é uma única bala dividida pelos dois

arma que dispara para dentro

mar de escombros

anunciação



II

Sem linguagem haveria infinito

a solidão das cidades segreda à maneira das cegonhas:

os animais suicidam-se?

na morte deseja-se possuir uma resistência contra o nada

enfrentar o calafrio

morrer é uma abstração

talvez a mais pura



III

O teu olhar esvoaçou como os pássaros em estado de murmuração


abre-se como uma flor noturna

uma Islândia solar

uma floresta do outro lado da janela

em ascensão

a queda do outro lado do tempo


uma manhã de areia muito grossa

serpenteia as primeiras casas com fachada para o mar

a curva de ventos regulares

traz à pele a textura do momento

o sabor do sal

a grandeza da nuvem

a cegueira do grande estuário

a plaina adormecida

reconhecer-se sem eclusas e sem gramática

é uma véspera feita de ouro puro



IV

ter amado é conhecer duas mãos

um simples gesto

a exclusividade de uma memória


sobreviver a um amor perdido

à dissecação do amor

é  pairar numa cidade que se evapora




quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O TAMANHO DO MUNDO (poema de rasura do livro de António Lobo Antunes)

 




O TAMANHO DO MUNDO

 

A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite

Uma lágrima de torneira atravessa o escuro

O relógio elétrico na mesa de cabeceira a tricotar o tempo

converte o sono em mobília

Os objetos aumentam nos naperons

inclinados para mim a escutarem

Eu a juntar-me aos poucos no colchão

Tão estranho as pessoas serem uma voz

vinda do centro da terra

com o silêncio de Lisboa inteira à volta

O primeiro morcego a riscar o silêncio

com o giz do seu grito

Qual de nós sou eu?

 

Tantas cores vivas de repente em mim

O mês de abril a nascer-me por dentro

Orgulhosa de continuar a florir

assistindo aos pássaros que não poisam nunca

Gaivotas que trazem

os primeiros barcos da manhã no bico

É impossível que os mortos não andem aí à procura

Há tantas vidas em nós

para onde irá isso tudo

Qual é exatamente o tamanho do mundo