segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

O Verão a despedir-se

 



No quintal da mãe há uma figueira em fuga para o céu. Crescendo em altura, contrariando os padrões da espécie, tenta, talvez, proteger os frutos da cobiçosa mão humana. Ou pode ser, simplesmente, por altivez. Quem disse que todas as figueiras devem ser humildes?

Uma árvore é uma cidade para os pássaros, escreveu Aquilino Ribeiro. Mas isso era dantes, no campo. Aqui, nos subúrbios da capital, uma árvore é uma aldeia despovoada de asas.

Escasseiam os sicófagos, pousando nestes ramos aéreos. Assim, vão amadurecendo virgens, os figos, aconchegando-se na rugosa folhagem protectora. Esborracham-se moles contra o chão. A pasta de melaço agarra-se teimosa ao pavimento. É preciso varrer com afinco e mangueirar na máxima pressão, durante um par de  horas para que tudo volte a ficar limpo. É setembro, os figos sentem pressa em desabrochar. 

O Verão a despedir-se.

A rapariga limpa o chão e as escadas de mármore diariamente. A pedra está preta. É uma azáfama tornar tudo branco outra vez. A orgulhosa figueira faz da rapariga um sísifo. 

No silêncio do dia vai tocando uma música que só a rapariga escuta: a mamã é giraça, o papá tem umas massas, por isso, cala-te miúda, não choramingues.

Há um momento de esperança, quando o saco cheio da papa de frutos fermentados e folhas velhas é colocado no lixo. 

E logo outro figo fará ploc, cumprindo a gravidade dos corpos. Mas neste momento o quintal está lavado e varrido e valeu a pena. 

Na manhã seguinte a rapariga retornará à rotina, no quintal da mãe. Novos frutos esponjosos irão resistir à devoração animal para se entregarem à  dureza inanimada dos minerais.

Miúda, acalma-te, não chores mais. Os peixes saltitam, o algodão cresce.

Haverá novo momento efémero de tarefa cumprida. A luta é inglória.

Num destes dias, pequena, vais crescer até ao céu. Vais abrir as asas e sair voando pelo mundo.

As vassouras repousam encostadas às sebes. A mangueira pinga, sem fé. Os cães observam distraídos.

Por enquanto fica tranquila, bebé, nada te faltará. Os papás estarão sempre por perto. Eles cuidarão de guardar as tuas costas.

Durante duas horas matinais, no setembro de um quintal de subúrbio, a vida torna-se uma pasta de melaço rijo. O Verão a despedir-se.