segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Um Cavalo de Várias Cores (Parte I)

 

Desenho de Moebuis


A rapariga senta-se a ler na mesa da cozinha, de frente para a janela das traseiras.

Se levantar o olhar encontra o quotidiano da vizinha no prédio adiante. Ela estende roupa. Daqui a nada chega a moradora do apartamento contíguo, apontando uma pistola de água aos pombos que teimam em lhe invadir a varanda.

Deve ter vasos semeados no chão por isso enxota exaustivamente as aves do seu território. Torna-se uma rotina diária, para a velha e para a rapariga que observa.

A rapariga está de volta ao livro. É um volume grosso, difícil, provavelmente de alta literatura.

Consegue concentrar-se meia hora sem interrupções. E logo pára.

Foi um professor de inglês que lhe ensinara o truque, há muito anos, segundo o qual o cérebro necessita de paragens regulares para atingir a rentabilidade máxima. É preciso descansar para depois prosseguir.

Assim, a rapariga, aproveita o breve intervalo para lavar os escassos pratos do almoço que descansavam sujos na pia. 

De novo no livro outra meia hora.

Se fosse uma escrita muito pesada a rapariga não aguentaria senão vinte minutos. Não é o caso.

Quando leu o Catch 22 só conseguia dez minutos de cada vez. Apesar deste ter fama de livro cómico, encontrou as piadas abafadas pela opacidade da prosa. Larachas que não desabrochavam, meras intenções de bom humor. Desistiu a meio da obra. Uma narrativa abortada é sempre triste.

Agora estava absorta na história passada em Berlim, no início do século XX.

Mas a matrona da frente volta à varanda para dar guerra aos pombos.

Tinha sentido algum receio antes de iniciar a leitura actual. As amigas compartilharam dificuldades, preconizando problemas em abraçar incondicionalmente o livro.

Mas ainda hoje de manhã, o amigo falara-lhe bem da obra. Isso descansara-a. O amigo sabia de literatura, além do mais.

O amigo era um tesouro escondido, além do mais.

A rapariga vive no décimo andar, consegue ver as varandas abertas e as marquises fechadas dos edifícios em frente de cima a baixo até ao passeio. Chegam-lhe dezenas de histórias familiares à boa maneira do James Stewart na Janela Indiscreta hitchcoquiana, mas sem a distinção e o status do atraente cavalheiro de meia idade.

Na rua, ao centro, quando olha para baixo, está a mercearia do bairro.

Os bêbados fizeram deste local o seu poiso costumeiro. Encostam-se ao corrimão das grades que separam o passeio do beco onde encostam os camiões que vêm descarregar os víveres.

Parecem aves de grande porte, das que não voam, e descansam uma perna de cada vez contra o metal. A estes ninguém enxota com pistolas de água. Ficam ali a tarde toda, de garrafa na mão, emborcando cerveja atrás de cerveja até começarem a vociferar.

No início da noite o doido dá a volta ao quarteirão e grita alucinado no meio da avenida. Já ninguém estranha, teve uma vida trágica.

A vida é um vaivém de concertina. Um movimento entre dois extremos: o medo da solidão e o desejo de estarmos sós. Corremos de um lado para o outro. O sumo da existência é a música que se produz do rame-rame constante entre os polos opostos.

Os bêbados não têm ninguém em casa. Fizeram por isso, afastando tudo e todos dos seus territórios. Depois procuram a companhia dos outros bêbados, à porta da mercearia, nem chuva, nem sol, nem ventania, nem quarenta cães a ladrar, nada os demove daquelas matinés. 

O Mike um dia saltou de um quarto andar atrás de um gato. O seu próprio animal de estimação decidira voar à caça de um passarinho. O Mike é gentil quando não está no meio de um surto. Raramente fica agressivo, muitas vezes cede à ira. E grita. Urra. Vocaliza de forma como nunca se costuma ouvir. Não soa como um humano. Nem como um animal. É o Mike a manifestar-se. Ninguém estranha. Se calha a estarem acordados durante a noite ouvem-no. Se dormem nem se dão ao trabalho de acordar. O Mike é um doido totalmente familiar, quase um pombo doméstico de asas goradas.

A rapariga, por vezes, acena-lhe da janela do décimo andar, ele responde levantando o vasilhame em jeito de cumprimento. É a ternura que acontece, também, à distância.

A rapariga deitando olhares reprovadores aos fregueses sociais da mercearia só mais tarde irá perceber que partilha com eles a mesma solidão líquida. Uma semelhante condição de cegueira selectiva.

Ela passa as tardes virada para fora pois deixou de ser capaz de olhar para dentro da sua própria casa.

A casa passou a ser um vácuo. Não existem paredes, apenas simulacros de paredes. Nem ladrilhos, nem tecto, nem móveis, nem cores. O olhar ancora-se nos bêbados para que o corpo se firme no chão da cozinha. Apenas este compartimento existe como ponto de fuga. A janela é salvação. Ela vê os bêbados e vai deglutindo mentalmente cada gole de cerveja que cada um sorve das garrafas castanhas. E brinda com eles ao naufrágio regular do dia-a-dia.

Voltar a cara para o interior da casa é constatar a implosão do lar recém destruído. Então, agarra com o olhar o fio condutor que a ampara até ao lado de fora do vidro, como uma Menina Dos Fósforos reversa, procurando avidamente a vida dos outros, uma pequena labareda que a impeça de submergir no seu escuro mar interior.





quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Quem Quer Ser O Príncipe Carlos?



Fotografia de Rodchenko


Não vem do alto dos céus

nem de cima nem de baixo

do centro ou arrabaldes

é uma ideia do corpo

um cacho caduco

acontece 

derramando-se

depois solta-se

do seu eixo

sem premeditação


Apenas ossos e ânsias

do corpo e lama

uma ideia sagrada

como futuras guerras

antigas


Dizem entre dentes

até um rei 

roeu a garrafa

da lei das núpcias

quando o ar falta

respira-se 

por guelras


O Amor é teimosia

que vem à gente

por intervalo