sábado, 30 de janeiro de 2021

Caução

Fotografia de José M. Rodrigues



 Há quem veja violência

no coração-carne

fonte crua

onde principia o mistério

que nem a morte desvanece


Violenta é a certidão

que cauciona 

a propriedade do orgão

quando a testemunha  transparente

do perfil satisfeito

preto no branco

após o acto

é outra

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Memória

desenho de Moonassi




 A avó visita o rosto

da neta ao espelho

quase uma surpresa

ela vê que o tempo rasga

a camuflagem

da balsâmica juventude

num ápice

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

40 Poemas para as Máquinas - 1





Hoje acordei para o fim do mundo

e tu já não estavas

Ainda vejo

da véspera

um último sinal

de chamada


Agora a ausência

uma morte antecipada

a morte total

uma morte pré-morte


percorro o cenário

da cidade 

vista de cima

a realidade interrompida


a claridade do código

esculpiu a noite de pedra

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

mulheres tolas creem que amor é suspirar

 

Fotografia de Lissy Elle


 

As mulheres estão sempre a carregar

nas tintas

 

a enfiá-la

na ilhó da minha luva

 

ajoalharia no molhado

num lugar público

 

a colcha no chão

almofado por baixo do rabo

ele circuncidado

tremia

fome de dentes

autêntico escorpião

nativo

a lamber e a delamber

o hálito fresco

o sítio mais macio

suave como um pêssego

os seus hunguenotes

a marcha dos sapos

na boca

se ninguém estivesse

a olhar

tão limpo e branco

papa diluída

orvalho

 

o que faz o bigode poeta

nas mulheres

um marinheiro chegado do mar

a arder

sem uma palavra

nuvem matutina



in Dias Alciónicos (experiência de rasura de Ulisses de James Joyce, na tradução de Jorge Vaz de Carvalho)

 

 

 

domingo, 3 de janeiro de 2021

Bicho-de-contra

Fotografia de Christy Lee Rogers




concha de ataque

contra o mundo

a baba de ovos

estrelados à pressa

a escorrer no queixo

fios de angorá

a virar argamassa

a mentira tecida

na véspera

o espanto do lugar

vazio na cama

uma pessoa habitua-se

a tudo

só não vive sem cão

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A Casa na Praia

 



Rasura de um conto da Mónia Camacho da Antologia Minimalista:


A Casa na Praia


Numa melancolia pouco rigorosa

a casa murmura o teu nome

o jornal coberto de pó

em cima da mesa da cozinha


os pássaros vêm à praia

prisioneiros de nada

uma mulher sai à rua

com pantufas de ananás


A casa é uma teia de aranha

um regresso que se esfumou

o limão das memórias

em todos os guarda-chuvas que perdi

pedaços de geometria

coisas parvas


até que o Sol cai por trás do mar

e a noite esconde tudo