domingo, 31 de maio de 2020

A culpa é do Mordomo





Venho hoje aqui apresentar uma reclamação formal. Indiquem-me , por obséquio o guichet próprio para o efeito. O caso é o evento de ontem. Meia hora que me aconteceu. Na verdade podia dizer o mesmo da totalidade do dia. Mas não irei tão longe, não sou exigente. Contento-me com aqueles trinta minutos específicos. Vivi-os com alguma intensidade, são meus, tenho direito a rememorá-los de fio a pavio, sem cortes.
Se fosse cinema dir-se-ia que fui à bilheteira adquirir o ingresso e à beira da sala o porteiro barrou-me a entrada, sem apelo nem agravo, como um tirano implacável e discricionário.
Quero assistir à sessão, na fila da frente, em poltrona reclinável de couro, sem pipocas, obrigada, sempre dispensei os ruídos da ruminação como banda sonora. Estamos a falar de uma cena solene e rara como um encontro de argonautas furtivos. Aceito nada menos que o silêncio para acompanhar.

Sei exactamente o que aconteceu, detenho a informação. Se me tentarem iludir, no mínimo pormenor, saltarei da cadeira como uma mola e gritarei fraude. Sou testemunha, uma das raras. Agora desejo reviver o episódio.
Enfrento o mordomo, de cernelha, se preciso for. 
Avança de conta-gotas na mão. Aplica-me nos olhos umas gotas magras. O líquido revela algumas imagens, fotogramas desfocados, fragmentos de corpos, olhos no colo de olhos, a pressão correspondida de um beijo aberto, vestígios de sensações, migalhas.

Quem é este cacique local, este guardião do templo, sádico e manipulador?

Dizem-me que vem por bem. Que defende os nossos interesses. Que nos salva de nós mesmos. Que coleccionamos o Passado como um vício. E no canteiro ao lado semeamos umas ervas a que chamamos Futuro. Alimentamo-nos dessa horta. Fazemos um cocktail dessa mistura para matar a sede de sonhar.

Que sabem eles?
Fomos expulsos do Paraíso. Sem justa causa. Não me venham com a história de que estávamos mesmo a pedi-las. Que tivemos o que merecíamos. Que alguma fizemos. 
Éramos animais. Apenas animais. Animais com um sorriso.

Do primeiro suor do nosso rosto nasceu o Tempo, a nossa primordial Agricultura.

O Presente é um clarão de luz branca que nos cega. 










Mulher Sem Razão

Fotografia de Vitorino Coragem



Afogada no próprio corpo
ausente como um vento
que passou
orvalhando a memória

Mulher que não estando
estava lá
Sem cabeça nenhuma

Electrizada na decapitação
aos primeiros minutos
da morte uma assombração
instantânea

Mulher revelação
um dia depois impressionando
a fotografia
amarrada nas catacumbas
do coração

(Título roubado, à descarada, ao Cazuza)

sexta-feira, 15 de maio de 2020

O Tempo e a Distância

Pintura de Alison Watt




A distância
desprende a pele
rompe a cordoalha
que abraça a
terra chama
liberta o corpo
no esquecimento

olhos
ouvidos
são tíbios
acólitos
de memória

A carne lê
a carne
traduz o relevo
a natureza da bílis
e do mel
em clarão
e eco

O tempo amputa
a carne
da carne
convida ao mergulho
na treva
a metamorfose
do silêncio.

domingo, 10 de maio de 2020

Cama de Gato

Bright Darkness, desenho de Moonassi



Naquele tempo os telefones estavam sempre presos a uma ficha na parede.  Hoje em dia, apelidamos de fixos esses aparelhos obsoletos, em oposição aos outros, os móveis. Existiam em cabines próprias ao acto de telefonar. Também nos cafés, mercearias, ou estabelecimentos de comércio em geral, existia uma zona, mais ou menos privada, onde se podia ter acesso a um telefone.
Ao ar livre era impossível falar com alguém distante, a não ser por sinais de fumo. Pagava-se a chamada ao período. Tento recordar, em vão, detalhes  sobre o preço desse tal período que durava uns escassos segundos, seriam vinte cinco tostões, cinco escudos? Posso apenas garantir, sob o peso das décadas, da inflação e de uma conversão monetária ao Euro, que não era barato. 
Os namorados ficavam, quando apartados, vários dias incomunicáveis, sem que isso representasse qualquer arrufo, castigo, amuo, ou zaragata mais acesa. Era a realidade, as pessoas adaptam-se.
Houve um dia em que rumei ao norte contando que o meu par estaria a sul. Ao chegar ao destino, à porta do edifício na universidade onde ia entregar o relatório de estágio, dei de caras com ele. Surpresas e justificações cumpridas e ultrapassadas, (afinal éramos colegas de curso, para além do mais) demos uma saltada ao centro da cidade para tratar de um problema com os meus óculos de sol. Está confusa esta ideia dos óculos, ter-se-iam partido, por acidente, talvez tenha até sido ele, sem querer, ao sentar-se inadvertidamente em cima deles. O que é garantido é a cena seguinte, à saída do oculista.
Caminhávamos lado a lado, na direcção da viatura, sem nos tocarmos, não era nosso hábito mostrarmo-nos de mãos dadas. Às tantas ele deixa-se ficar para trás uns três passos. Estaquei quando apercebi o seu atraso. Em frente, ao fundo da rua direita, uma rapariga tenta desfalecer e é amparada por outra que a segura quase já no chão. Olham para nós. Viro-me para ele, está estarrecido. Volto às pequenas e percebo tudo. Foi um fragmento digno de cinema mudo. Um silêncio que dominou o ar da tarde e que podemos preencher com o Entertainer de 1902, por Scott Joplin, um piano alegre, apenas.
Acção:  as miúdas sentadas no degrau de uma loja. Eu de pé, rodando o pescoço para um lado e para o outro. Ele apavorado. Corta-se para a legenda: não consigo distinguir as feições da moça, está muito longe mas sei quem é: sou eu! Eu, com menos seis anos, acabadinha de me apaixonar por ele!. Volta o filme. A amiga abana um caderno junto da face da semi desmaiada. Ele tenta voltar para trás. Eu vou em frente. Espero junto ao carro. Muito perto das jovens estudantes, parecem caloiras.
Nova legenda: Sinto por ela uma empatia de gémea siamesa. 
A película deve ter queimado neste ponto pois a próxima cena é comigo num quarto completamente despido de mobiliário com a excepção de uma pequeno colchão nu, rente ao chão. Choro. As colegas da casa onde tinha vivido nos últimos tempos do curso tinham-me recebido para pernoitar  mas haviam saído. Estava tudo escuro. Rendia-me ao pranto, como se faz quando se é muito novo, tenrinho, e o reservatório de lágrimas ainda é virgem.

Lembramo-nos de cada cena passada uma única vez. A seguir lembramo-nos da lembrança primeira, e logo da lembrança dessa lembrança e assim sucessivamente. A memória é uma espécie de máquina de fotocópias incansável, que vai ficando sem tinta com o passar dos anos. Mas como não pode parar vai pedir emprestada tinta a outro aparelho: a imaginação. Assim, o desenho final acaba sendo um misto entre ficção e realidade e esses milhões de imagens construídas vão cerzindo a nossa identidade.
De repente ele entra no quarto. Vejo-o como uma fotografia velha, como as que costumo pregar num quadro de cortiça junto a uma janela que recebe o sol de chapa, e vai perdendo a cor, os contornos. Não lhe reconheço a expressão da cara, não lhe destrinço as palavra. Sei que dos seus olhos jorrou algum fluido lacrimal e da sua garganta se soltou meia dúzia de soluços porque essa é a informação que ficou da cascata de recordações referentes ao episódio, como uma nota de rodapé anexada ao conjunto de figuras desfocadas, inacessíveis. 
Tentei acalmá-lo. O que lhe disse bem podem retirar do que endereçaria cada um de vós à pessoa que mais amou na vida, não me consigo citar. Quando cheguei ao ponto de julgar-me, pelo menos parcialmente, bem sucedida pedi-lhe que ficasse comigo nessa noite. Que não podia, que não dava, que tinha de regressar para junto da moça, pois estava enferma. Talvez a palavra suicídio tenha sido proferida. Ou em algum momento a deduzi e a convidei a entrar na narrativa, tão óbvia é, e cómoda, essa explicação para ter ido embora, ao encontro da caloira do programa Erasmus. Era espanhola. Na altura pouca ou nenhuma importância atribuí à sua naturalidade, nem lhe retive o nome. Agora creio ser este um pormenor de alguma relevância literária, lembrando-me um pouco o Eça, e tenho pena de não poder dizer se era Carmen, Pilar ou quiçá Encarna, Encarnita, Nita, algo parecido.

Quem me salvou naquela noite foram os gatos. Nenhum em concreto, pois era só eu e o colchão magrinho, no quarto. Todos os gatos em geral. Os gatos que tinha encontrado na vida. Os gatos do futuro. Os gatos dos esquemas dos livros de estudo. O gato, essa entidade em abstrato. A gata que tinha ficado à minha espera em Lisboa. Enfim, um grupo imenso de gatos que me invadia o pensamento com o seu modo exemplar de combater a adversidade que é o poder de usar o corpo como barreira contra os males do mundo. Os gatos enrolam-se numa bola e ficam a sós com o conforto da sua própria carne. Tal é o alívio poderoso que sentem que chegam a ronronar, mesmo que estejam, na realidade, muito doentes.
Foi o que resolvi fazer: deitei-me na cama como uma concha. Procurei sentir cada segmento da minha anatomia, os pés, as pernas, verificando a ausência de sofrimento físico. Tomei o pulso a  cada centímetro da minha pele descobrindo a sua saúde e estabilidade. Coloquei a mão entre as pernas para alcançar o veludo que ali dormia sereno. A barriga estava quente e calma, não havia sinal de borborismos digestivos, há muito que o último alimento havia sido processado. Explorei também os ombros, as saliências no peito, tudo estava em paz e harmonia. O meu corpo, estava bem, a fronteira resistia, ainda, contra a vastidão. E assim consolada, num momento perfeito de solidão pura, fui gato até ser dia.

domingo, 3 de maio de 2020

Triturar o Tempo


fotografia de Lucyna Kolendo


Este é o tempo
dos dias
que se dispõem
a triturar
relógios

uma estátua revelada
uma longa língua
cega é a duração
que se desnuda
um histrião eriçado

um agora
que se ingurgita
prolongando-se
como um rastilho
de silêncio

da minha boca
brota um dilúvio suspenso
uma nuvem carregada
adiando-se eternamente
um aluimento que fica
por cumprir