sexta-feira, 3 de abril de 2020

China Boy

China Girl, David Bowie



Mal tinha entrado na puberdade quando me apaixonei por um rapaz de traços orientais. Não me lembro do nome dele pois todos o tratávamos pela alcunha. Era o China, simplesmente. Repetente inveterado,  era já um homem feito e eu estava longe de ser do tipo de miúdas que lhe despertasse a atenção. Ainda assim, não se encontrava  desprovido de empatia, e  como eu andasse sempre feita cachorrinho à sua beira, volta e meia dedicava-me dois dedos de conversa. 
Um dia, com as aulas já terminadas, nas férias grandes, sem nada de melhor para fazer senão suspirar de paixão frustrada, resolvi escrever-lhe uma longa declaração de amor. Tive artes de lhe fazer chegar a carta em mãos, por intermédio de um amigo comum. China marcou um encontro. Nem sei bem como consegui sobreviver à ansiedade daquele téte-a-téte. Só me ficou uma frase da memorável reunião: "pena não teres dito mais cedo... não és bonita mas também não és feia".
Depois disto não tenho mais memórias a declarar sobre o "romance" gorado, a não ser uma montanha russa emocional solitária que durou meses, na qual oscilei entre as deleitosas subidas proporcionadas pelo "mas também não és feia" e as abruptas descidas sugeridas pelo "não és bonita".

Anos mais tarde, já estava o moçoilo serenamente arrumado numa gaveta do sótão do meu esquecimento, encontrei-o no autocarro da Vimeca. Era neste ponto da minha história uma jovem mulher, com plena consciência dos meus atributos físicos.
Cumprimentámo-nos. E o que recebi como mensagem silenciosa, pelo modo minucioso como me observou de cima a baixo, foi que tinha aprendido a clássica lição dos patinhos quase feios. 
Na despedida reparei nos incisivos superiores cariados e dei graças a Deus por ter tido um desabrochar serôdio. Não fosse essa bênção estaria, talvez, na altura, a mandar, com justa causa, às malvas o mancebo. 

Apesar deste dissuasor epílogo continuei sempre a encontrar uma certa graça atractiva nos homens asiáticos. Provenho de uma família de gente muito teimosa.


quinta-feira, 2 de abril de 2020

Um Pangolim, Um Morcego e um Primata Magoado Entram Num Bar




Pangolim não é matraquilho
não morde nem grita
mas enrola como uma bola
quando assustado
atrai por isso o Primata
magoado

o Primata caótico com status


o Pangolim papa formigas
o Morcego chupa frutas
ambos convivem na canja
do Primata mareado

Ama as escamas do Pangolim
o Primata com dói-dói
no pâncreas
no hemorroidal
no  contrafeito rim
papa a sopa de Morcego
papa Urso de sarrabulho
num fuzué animal


e do caldeirão ferino
salta um veneno invisível
uma coroa de espinhos
fura o pulmão ao Primata

Cai a máscara ao Neandertal

Salve salve
Ó sedento Primata
ferve em ti uma fé
que tudo devora
e uma fome
que a todos mata