Estava
eu, outro dia, a ler um livro do Ricardo Araújo Pereira quando me
deparo, a abrir um capítulo, com o poema do Chico Buarque de
Hollanda “Construção”.
Começo
por fazer um curto parênteses para declarar que não aderi à moda
de dizer mal do RAP. Não porque tenha alguma coisa contra a Moda em
geral, até costumo seguir as suas tendências, mas há de facto
modas que não fazem o meu género. Lembram-se daquelas botas de cano
alto muito bicudas, mais conhecidas como
botas-de-matar-baratas-ao-canto-da-sala? Pois eu sempre as achei
abomináveis e não adquiri nenhum par. A ponta das minhas botas
quer-se redonda, ou na pior das hipóteses quadrada, vá. Bicuda:
nunca.
Isto
para dizer que sou admiradora do rapaz. Vou discordar com ele num
ponto mas é um acaso, uma excepção.
Então
inicia ele com o poema “Construção” um capítulo que tem por
título. “Mudar uma Coisa para outro Sítio”
E
pensei eu, mas que raio está um poema destes a fazer num livro sobre
o Humor?
Eu até
percebo, diga-se de passagem, porque se fosse eu a escrever um livro,
fosse sobre que tema fosse, futebol, ovos mexidos, bacará, etc, eu
tentaria encontrar um pretexto para enfiar lá o dito poema. Porque
este é um dos poemas da minha vida.
Quando
eu era pequena o meu pai tinha lá em casa um álbum do Chico Buarque
chamado “Construção” e como podem ver nas fotos, na contra-capa
do disco vem o poema com o mesmo nome.
Ora
isto foi num tempo em que eu não tinha acesso a livros de poesia,
começava a ler na escola alguns poemas que vinham no manual da
disciplina de Português. Mas este poema estava ali à mão de semear
e pronto para ser cantado, que era uma coisa que gostava muito de
fazer. Então devo ter lido a “Construção” dezenas de vezes,
para não dizer centenas. Obviamente decorei o mesmo. E a páginas
tantas comecei a pensar sobre o que queria dizer aquilo.
Ao fim
de muitos anos fui capaz de avançar com uma explicação para a
composição poética do Chico.
“Construção”
é um poema sobre a construção dos poemas, é um meta-poema. O
poema é, aqui, como uma casa.
Senão
vejamos:
Na
primeira estrofe os versos são escritos com uma linguagem quase
comum:
“
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um passáro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego"
É
como se o autor vertesse em verso uma notícia de jornal: Morreu no
Sábado passado, um operário da construção civil que estava a
trabalhar no cimo de um prédio quando caiu do mesmo. Deixou mulher e
filhos.
Portanto
ao transformar a notícia em versos consegue-se um poema no seu
estado bruto. Como uma casa que tem, no seu início, os alicerces, as
vigas de cimento envolvendo o ferro no interior, o que irá dar
suporte à construção, ou seja, ao poema. Podia ficar assim? Podia,
há muitos poemas deste estilo, nus, despidos de adornos, secos,
mostrando apenas a sua força mais interior. Quando se olha para uma
casa nesta fase já se percebe que aquilo é uma casa.
Segunda
estrofe:
"Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E
atravessou a rua com o seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e solução como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público"
Aqui
a linguagem já não é comum, afasta-se do que sairia numa notícia
de jornal, as palavras associam-se de forma mais inusitada. O que
acontece é que começamos a dar conta que aquele homem quando saiu
de casa já vinha transtornado, notamos agora o seu sofrimento,
entramos no seu mundo interior e percebemos o seu drama. É a
casa-poema ganhando paredes, tijolo a tijolo, que são as palavras a
serem colocadas no sítio certo.
Se
olharmos, agora, a casa já é mesmo uma casa, com paredes e tecto e
tudo o que uma casa precisa.
Mas, o
Chico dá-nos ainda uma última liçãozinha de poesia:
Um
poema pode ser ainda melhor se a linguagem for mais invulgar,
associação de palavras for ainda mais surpreendente. Então:
“Amou
daquela vez como se fosse máquina
Beijou
sua mulher como se fosse lógico
Ergueu
no patamar quatro paredes flácidas
Sentou
pra descansar como se fosse pássaro
E
flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se
acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu
na contramão atrapalhando o Sábado”
Agora
eu consigo ver o desespero do homem com outra nitidez, como se o
pudesse entender, como se pudesse ler-lhe os pensamentos e sentir a
sua dor.
Isto é
a casa a ser rebocada, a sofrer todos os acabamentos finais, a ficar
perfeita e pronta a ser habitada. É o poema a conseguir a sua força
máxima.
E por
tudo isto “Construção”, ao contrário do que o RAP afirma, não
é um poema onde simplesmente umas palavras mudam de lugar. É muito
mais que isso.
“Construção”:
uma lição de poesia.
Toma,
RAP. De nada, pá.
Nota: o livro em questão chama-se “A
Doença, O Sofrimento E A Morte Entram Num Bar” ( Uma Espécie de
Manual de Escrita Humorística) e é muito bom, recomendo vivamente
a sua leitura.