domingo, 28 de janeiro de 2018

DANOS MAIORES


Robinio pseudoacacia (Acácia-bastarda, Acácia-pára-sol, Falsa-acácia, Robínia), 
Largo da Batata, Torres Vedras


Vão cortar
as robínias
do largo da Batata 
em Torres Vedras
dizem-me
para evitar
ruturas
danos maiores
árvore
quase nome
quase ratoeira
invasora de raízes
que rebentam
a longa distância
vão cortar
a ruína antevista
de vagens fortemente
comprimidas
frutos secos
dizem-me
ficar ao rubro
é passar o rubicão
ruído rumorejante
presságio obscuro
rumores de abalos
danos maiores
remendar
a sutura alada 
dizem-me
será utopia
rubrica  no tronco
ad aeternum
adiada



domingo, 21 de janeiro de 2018

Cão-gato



Egon Schiele - Woman With Blue Stockings


Cão-gato
em posição
erecta avança
a ponta a faca
à cabeça
xxx-acto

Cabra-cega
a vanglória
o chio o vagido
tapa-ouvidos
mata
roda-viva a girar

Cão-gato
cai em mim 
a direito
sofá cama
quarto sala
marca-pacto

Eu nunca iria
nu eunuco
tal crédito
tal debuxo
acreditar


Gato-cão
de ti tudo 
acolho dou
valência excepto
a castração



quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Inflamações

Burning Man, festival de contracultura,em Black Rock Desert, no estado americano de Nevada



Garganta rasgada?
Frio na borda dobrada
do estômago?
Pele dinamitada?
Ardor no esófago?
Pulga atrás da curva
da orelha surda?
Gente a baloiçar um açaime
à frente da boca,
um grampo a colar-se
no azul dos lábios?
E que tal mandar tudo
p'ró velho caralhinho?
Melhor que mercurocromo
e há muita dificuldade
em adquirir pólvora negra,
tanta falta de um bom rastilho.
Nada que um tremendo
"foda-se", uma aspirina e um elixir
não alivie.
Até ao dia.



segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Esfregona versus caneta

Carmen e Frankie


A esfregona rouba-me a caneta.
Por vezes a caneta rouba-me a esfregona.
Ficaria mais feliz, neste caso,
não fora o cheiro a xixi.

domingo, 7 de janeiro de 2018

CONSTRUÇÃO, UM POEMA DE CHICO BUARQUE








Estava eu, outro dia, a ler um livro do Ricardo Araújo Pereira quando me deparo, a abrir um capítulo, com o poema do Chico Buarque de Hollanda “Construção”.

Começo por fazer um curto parênteses para declarar que não aderi à moda de dizer mal do RAP. Não porque tenha alguma coisa contra a Moda em geral, até costumo seguir as suas tendências, mas há de facto modas que não fazem o meu género. Lembram-se daquelas botas de cano alto muito bicudas, mais conhecidas como botas-de-matar-baratas-ao-canto-da-sala? Pois eu sempre as achei abomináveis e não adquiri nenhum par. A ponta das minhas botas quer-se redonda, ou na pior das hipóteses quadrada, vá. Bicuda: nunca.
Isto para dizer que sou admiradora do rapaz. Vou discordar com ele num ponto mas é um acaso, uma excepção.
Então inicia ele com o poema “Construção” um capítulo que tem por título. “Mudar uma Coisa para outro Sítio”
E pensei eu, mas que raio está um poema destes a fazer num livro sobre o Humor?
Eu até percebo, diga-se de passagem, porque se fosse eu a escrever um livro, fosse sobre que tema fosse, futebol, ovos mexidos, bacará, etc, eu tentaria encontrar um pretexto para enfiar lá o dito poema. Porque este é um dos poemas da minha vida.
Quando eu era pequena o meu pai tinha lá em casa um álbum do Chico Buarque chamado “Construção” e como podem ver nas fotos, na contra-capa do disco vem o poema com o mesmo nome.
Ora isto foi num tempo em que eu não tinha acesso a livros de poesia, começava a ler na escola alguns poemas que vinham no manual da disciplina de Português. Mas este poema estava ali à mão de semear e pronto para ser cantado, que era uma coisa que gostava muito de fazer. Então devo ter lido a “Construção” dezenas de vezes, para não dizer centenas. Obviamente decorei o mesmo. E a páginas tantas comecei a pensar sobre o que queria dizer aquilo.
Ao fim de muitos anos fui capaz de avançar com uma explicação para a composição poética do Chico.
“Construção” é um poema sobre a construção dos poemas, é um meta-poema. O poema é, aqui, como uma casa.
Senão vejamos:

Na primeira estrofe os versos são escritos com uma linguagem quase comum:


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um passáro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego"



É como se o autor vertesse em verso uma notícia de jornal: Morreu no Sábado passado, um operário da construção civil que estava a trabalhar no cimo de um prédio quando caiu do mesmo. Deixou mulher e filhos.
Portanto ao transformar a notícia em versos consegue-se um poema no seu estado bruto. Como uma casa que tem, no seu início, os alicerces, as vigas de cimento envolvendo o ferro no interior, o que irá dar suporte à construção, ou seja, ao poema. Podia ficar assim? Podia, há muitos poemas deste estilo, nus, despidos de adornos, secos, mostrando apenas a sua força mais interior. Quando se olha para uma casa nesta fase já se percebe que aquilo é uma casa.

Segunda estrofe:
"Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com o seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e solução como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público"

Aqui a linguagem já não é comum, afasta-se do que sairia numa notícia de jornal, as palavras associam-se de forma mais inusitada. O que acontece é que começamos a dar conta que aquele homem quando saiu de casa já vinha transtornado, notamos agora o seu sofrimento, entramos no seu mundo interior e percebemos o seu drama. É a casa-poema ganhando paredes, tijolo a tijolo, que são as palavras a serem colocadas no sítio certo.
Se olharmos, agora, a casa já é mesmo uma casa, com paredes e tecto e tudo o que uma casa precisa.

Mas, o Chico dá-nos ainda uma última liçãozinha de poesia:

Um poema pode ser ainda melhor se a linguagem for mais invulgar, associação de palavras for ainda mais surpreendente. Então:


“Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o Sábado”

Agora eu consigo ver o desespero do homem com outra nitidez, como se o pudesse entender, como se pudesse ler-lhe os pensamentos e sentir a sua dor.
Isto é a casa a ser rebocada, a sofrer todos os acabamentos finais, a ficar perfeita e pronta a ser habitada. É o poema a conseguir a sua força máxima.

E por tudo isto “Construção”, ao contrário do que o RAP afirma, não é um poema onde simplesmente umas palavras mudam de lugar. É muito mais que isso.

“Construção”: uma lição de poesia.
Toma, RAP. De nada, pá.

Nota: o livro em questão chama-se “A Doença, O Sofrimento E A Morte Entram Num Bar” ( Uma Espécie de Manual de Escrita Humorística) e é muito bom, recomendo vivamente a sua leitura.