quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Poema Americano


Fotografia de Lissy Elle



Conheceu os filhos antes
de nascerem
tinha também uma ideia
clara do momento
da sua morte a sua
maldição não saber
o dia e a hora
multiplicava a tormenta

sonhava todos os dias
com uma viagem
num descapotável
vermelho entrava nele
descontraída de cabelos
presos com lenço
de seda à boa maneira
das actrizes francesas
dos anos sessenta o carro
americano

ia divertida
estrada fora
até atravessar um viaduto
suspenso sobre um ribeiro
invisível

galgava os rails
de proteção num voo
picado atravessando
o vento rindo
de uma piada perdida
que iria durar a eternidade
ou na pior das hipóteses
três míseros segundos


sexta-feira, 10 de agosto de 2018

taser


Instalação com Ondas de Daniel Palacio



transpor o silêncio
pronunciar
o termo certo
é taser


uma arma incapacitante
tântalo contraindo
distendendo a pele
o músculo preso
tremendo
arpões paralisantes


dois gatilhos
tudo o que irá transbordar
da baixa letalidade
será o fluir das ondas

os danos colaterais
decididos em plenário
transitando em julgado
pronunciar o termo certo

o teu eletrochoque
música a legendar o fogo
para os meus sentidos
toldados

Respigadora

pintura de Kwangho Lee



Do que é teu
quero apenas
o que não usas
de resto
podes ficar
com o prato
principal

O Homem à solta

Para o Roberto Gamito


Trabalho com Mapas de Mathew Cusick


Deus pariu
o Big Bang
e abalou
para férias
prolongadas
na conchinchina
partiu mais a Esposa
na sua própria paz

anda o Homem à solta
oremos Senhor

brinca aos Olimpos
e às Bolsas de Wall Street
uivos no Universo
nova Meca reconquistada
o maravilhoso
jogo da Macaca
oremos Senhor

diverte-se a alterar
as Alterações milenares
subtileza espetada
no flanco da Natureza
a mudança que tudo muda
implodindo o Antes
oremos Senhor

condimenta  com o medo
a carne dos animais
urina suor cerveja
sangue no caldo
fervente e pervertido
da sofisticação
dos ricos o pitéu
tem por sobremesa
a Pandemia
oremos Senhor


ri Satanás
refastelado
enquanto Sísifo
agarra a pedra
duas mãos arma
de arremesso
contra o olho da noite
oremos Senhor

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

As palavras não contam

Fotografia de Francesca Woodman




À porta
as palavras não contam
cada minuto
vai descendo
não sem antes
arranhar
a garganta
como unhas de gato
pata ante pata
intercalando cada lado
da ferida
sessenta estilhaços
penetrando a pele
até à badalada final
o canino de um tigre
pedra a lapidar
lápis infernal
cautério queimador
e eu capitulando
caindo
dilatadamente
muito abaixo
do chão

a porta cumprirá numa hora
as penitências desse ano
que as palavras não contam