sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Dores de Cabeça

“ Tenho para mim que os críticos são pessoas que não contemplam as árvores. Pessoas assim andam perto de enlouquecer e sofrem de dores de cabeça permanentes. As árvores, como objectos que atraem a electricidade, como bem reparou o bom Benjamim Franklin, estão em condições de servirem de meio curativo a certas moléstias cerebrais que produzem a crítica.”

Agustina Bessa-Luís in Caderno de Significados

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Antony e a Poesia do Hematoma




Quem ouve o Cripple and the Starfish (O ALEIJADO E A ESTRELA-DO-MAR  na versão portuguesa de Nuno Miguel Lopes) pela primeira vez pode concluir apressadamente que é um hino ao masoquismo. Pode sentir uma certa perplexidade pelo contraste da suave melodia com a violência da letra. Mas ao contrário do que possa parecer o Antony não está a fazer a apologia da agressão física e da submissão ao abuso.
Ele faz uma denúncia, aponta um espelho para que a personalidade submissa se reveja. Ele dirige-se essencialmente à parte fraca da equação, à estrela-do-mar. Pois este é um poema de resistência e adaptação. E quem apanha e se refaz para apanhar de novo, resiste, adapta-se e sobrevive. É alguém que corta o dedo e o vê crescer como uma ponta de estrela-do-mar e ao ver o fenómeno vezes sem conta acredita, começa acreditar na sua invencibilidade, numa espécie de imunidade, uma dormência, que tudo permite sem consequências de gravidade.
O Antony ironiza com esta filosofia de resiliência eterna, de animal esponjoso, que é tudo menos humano. Os humanos não regeneram, ficam marcados, permanentemente danificados, destruídos.
Daí o tom de sátira desta letra.
Antony aponta também a cumplicidade, para não dizer a culpa, da vítima, que sempre desejou um amor com crueldade. De facto não há agressor sem agredido e cabe ao agredido perceber que não é feliz. Daí a insistência nas expressões de felicidade.

No “Fistufull of Love” ( UM PUNHO CHEIO DE AMOR  na versão portuguesa de Nuno Miguel Lopes), música alegre e ritmada, a cegueira da vítima é elevada a um outro nível. Tudo é desculpabilização da violência. Todas as marcas, todas as feridas, todas as cicatrizes, todos os hematomas são símbolos de amor, marcas de devoção. Os punhos fechados que batem fazem-no como prova de amor. Isto é um espelho apontado ao coração e ao rosto de todas as vítimas de violência doméstica: para que se vejam, e o vejam o seu engano.
Porque para mudar é preciso ver, aceitar, compreender que existe um problema, um erro, uma ferida aberta, uma necessidade de mudança.

Encontrei há pouco tempo outro tema do Antony sobre violência doméstica que se chama Virgin Mary. Espero publicar a sua tradução para português (também pelo Nuno Miguel Lopes) muito em breve.
Missão quase impossível é a de colocar em poesia uma realidade tão brutal como é a violência doméstica. Juntar agressão e amor numa mesma composição poética. Isso consegue como poucos o Antony Hegarty.

UM PUNHO CHEIO DE AMOR

Tradução para português de Nuno Miguel Lopes do original dos Antony and the Johnsons "Fistful of Love"

Esta noite estive deitado na cama a contemplar
Um tecto cheio de estrelas
Quando de repente me atingiu
Tenho mesmo de te dizer como me sinto
Vivemos juntos numa fotografia de tempo
Olho nos teus olhos
E os mares abrem-se a mim
Digo-te que te amo
E que será para sempre
E sei que não mo podes dizer
Sei que não mo podes dizer

Assim resta-me decifrar
As pistas, os pequenos símbolos da tua devoção
Assim resta-me decifrar
As pistas, os pequenos símbolos da tua devoção

E sinto os teus punhos
E sei que é por amor
E sinto o chicote
E sei que é por amor
E sinto o ardor dos teus olhos abrir buracos
Que queimam através do meu coração
É por amor
É por amor

Aceito e colecciono no meu corpo
As memórias da tua devoção
Aceito e colecciono no meu corpo
As memórias da tua devoção

E sinto os teus punhos
E sei que é por amor
E sinto o chicote
E sei que é por amor
E sinto o ardor dos teus olhos abrir buracos
Que queimam através do meu coração
É por amor, oh, oh
É por amor

Dá-me um pouco de carinho à séria
Dá-me um carinho forte
Sê carinhoso

Punhos, punhos, punhos cheios de amor…

O ALEIJADO E A ESTRELA-DO-MAR

 
 Tradução para português de Nuno Miguel Lopes do original dos Antony and the Johnsons "Cripple and the Starfish"


Sr. Músculo forçando, irrompendo
Ferroada de coisinho dentro de mim, mim, mim
Mas só “ondulado”, disse o aleijado
Quando ao chão me caiu o queixo
Sorri sorri

É verdade que sempre quis que o amor fosse
Cruel
E é verdade que sempre quis que o amor fosse
Repleto de dor
E hematomas

Então, o Porco-Aleijado estava feliz
Gritou “amo-te tão completamente!”
E não há sentido ou razão
Mudo como as estações
Vê! Até vou amputar o meu dedo
Voltará a crescer como uma Estrela-do-Mar!
Voltará a crescer como uma Estrela-do-Mar!
Voltará a crescer como uma Estrela-do-Mar!

Sr. Músculo, mirando entediado
Olhou às horas só para me agredir
E suspirei e sangrei como um vendaval
Felizardo ensanguentado, felizardo magoado

Estou muito feliz
Anda, por favor, bate-me
Estou muito feliz
Anda, por favor, magoa-me

Estou muito feliz
Anda, por favor, bate-me
Estou muito, muito feliz
Anda, vá lá, magoa-me

Voltarei a crescer como uma Estrela-do-Mar
Voltarei a crescer como uma Estrela-do-Mar
Voltarei a crescer como uma Estrela-do-Mar
Voltarei a crescer como uma Estrela-do-Mar

Voltarei a crescer como uma Estrela-do-Mar
Voltarei a crescer como uma Estrela-do-Mar
Voltarei a crescer como uma Estrela-do-Mar
Voltarei a crescer como uma Estrela-do-Mar
Como uma Estrela-do-Mar…

Assim Seja

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Mudemos de Assunto


Andas aí a partir corações
como quem parte um baralho de cartas
cartas de amor
escrevi-te eu tantas
às tantas, aos poucos
eu fui percebendo
às tantas eu lá fui tacteando
às cegas eu lá fui conseguindo
às cegas eu lá fui abrindo os olhos
E nos teus olhos como espelhos partidos
quis inventar uma outra narrativa
até que um ai me chegou aos ouvidos
e era só eu a vogar à deriva
e um animal sempre foge do fogo
e mal eu gritei: fogo!
mal eu gritei: água!
que morro de sede
achei-me encostado à parede
gritando: Livrai-me da sede!
e o mar inteiro entrou na minha casa
E nos teus olhos inundados do mar
eu naveguei contra minha vontade
mas deixa lá, que este barco a viajar
há-de chegar à gare da sua cidade
e ao desembarque a terra será mais firme
há quem afirme
há quem assegure
que é depois da vida
que a gente encontra a paz prometida
por mim marquei-lhe encontro na vida
marquei-lhe encontro ao fim da tempestade
Da tempestade, o que se teve em comum
é aquilo que nos separa depois
e os barcos passam a ser um e um
onde uma vez quiseram quase ser dois
e a tempestade deixa o mar encrespado
por isso cuidado
mesmo muito cuidado
que é frágil o pano
que enfuna as velas do desengano
que nos empurra em novo oceano
frágil e resistente ao mesmo tempo
Mas isto é um canto
e não um lamento
já disse o que sinto
agora façamos o ponto
e mudemos de assunto
sim?

Sérgio Godinho

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Um Sinal

O corrector automático deste blogue não reconhece a palavra "inteligência" e também não dá alternativas ou sugestões. Deve ser um sinal. Só não sei de quê.

Clichés

Existem dois clichés universais baseados numa raiz que se bifurca: um homem que subestima a inteligência de uma mulher e uma mulher que subestima a misoginia de um homem. A primeira tem origem na fé desinformada. A segunda na boa-fé.

O Triunfo da Ciência

"As mulheres fenotipicamente menos dotadas têm encantos que as outras desconhecem" diz o geneticista derrotando o filósofo e o poeta.

Amores Perros (Love's a Bitch)




Impossível é não ver este filme do pois não há muitas hipóteses de encontrar um paralelo tão interessante entre cães e homens. Cães e homens como vítimas ferozes e/ou agressores inatos. Os cães são o fio condutor das acções dos homens que por eles vão desenvolvendo a sua história, o seu destino. São três histórias que se vão desenrolando como paralelas e passam a tangentes. São três elementos caninos, sendo que nas duas primeiras histórias existe um único protagonista de quatro patas para cada núcleo humano e na terceira existe uma pequena matilha para um homem solitário.
No final as histórias entrelaçam-se, e há um cão que muda de dono.
O melhor de tudo: o olhar de Gael García Bernal (Octavio) ao longo de todo o filme quando confronta a mulher que ama. A contrastar por um lado e a coincidir por outro com a dor, a violência, o sangue das três narrativas.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Antony e a Poesia da Queda







Antony Hegarty (líder da Banda Antony and the Johnsons) é um cantor/autor inglês de 41 anos que desde muito jovem foi viver para Nova York.
Mudou-se de uma zona muito conservadora, na Inglaterra, para outra radicalmente oposta, nos EUA, onde sentiu que podia dar asas à sua criatividade com toda a liberdade de que necessitava.
Antony é um transgénero, de desde cedo começou a actuar em bares associados ao transformismo, no coração de grande maçã.
Mas mesmo os amigos que o conheciam bem se espantaram quando ouviram a sua música pela primeira vez. Como é que no local tão violento, de tantos excessos, surgia agora uma música tão celestial, tão pura, tão simples?
Detenho-me nas palavras de Antony. As letras dele são poemas, não há aqui espaço de manobra para essa eterna discussão.
Penso que o Antony dedica a maior parte dos seus poemas, se a não for a totalidade, ao amor. Aos vários tipos de amor: amor à família, amor à mãe, amor ao pai, à irmã, aos amigos, ao mentor, ao planeta. Mas o que mais regularmente se repete é o amor romântico, um amor ligado ao sofrimento e que aparece associado à queda. Antony explora exaustivamente a expressão “fallen in love”   em vários temas.
Em “Rapture” ele diz que tudo cai, os olhos caiem, os lábios caem, o cabelo cai, as folhas, as lágrimas e o Mundo. E toda a gente cai, a mãe, o pai, os amigos, e esta uma queda de assombro, pelo amor ao Mundo que parece perdido.
Em “Frankenstein” ele fala de uma mulher que se está a apaixonar e trata-se da queda num abismo. A mãe avisou-a para ter cuidado com a queda e agora ela sabe e vê o frio na sua fonte, na sua essência. E está a cair e tem a visão do amor, um amor gelado, uns braços apertados, um abismo.
Temos ainda a “I fell in love with a dead boy” , aqui a queda está logo no título, haverá queda maior que a de se apaixonar por um rapaz morto? É uma queda mas para o Antony mais forte que tragédia da morte é a alegria do amor por si mesmo. Não há palavras mais esperançosas que as deste poema. Ele ama um rapaz morto e mais importante é o amor.
Penso que esta letra tem duas leituras. Uma sobre a força do amor como força universal. A outra é sobre a transformação que o Antony experimentou ao passar de rapaz para rapariga. E é essa a pergunta que ele faz no fim: és um  rapaz ou és uma rapariga? Está, penso eu, a falar de si, e quando diz que se apaixonou por um rapaz morto creio que fala ainda de si. Quando passou a reconhecer-se como transgénero e “matou” o rapaz” que havia nele apaixonou-se  por si, ganhou auto-estima, reencontrou-se, “ganhou asas” (ideia que ele explora em várias canções como por exemplo na Bird Girl). “I fell in love with a dead boy” é também a história de uma conquista, a sua conquista.
Outro tema recorrente na poesia do Antony é o do amor associado à dor física, assunto que consegue abordar de uma forma surpreendente. Trataremos desse aspecto mais à frente.





Pássaros de plumagem semelhante tendem a agrupar-se

Há "encontros" inevitáveis. Encontros (sem aspas) são do domínio do acaso, da sorte e do azar. Esses não se controlam. "Encontros" são do domínio do tropismo genético, e esses também não.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Oh Se Sei...

Quando estiveres a sofrer...

Experiências

Uma mulher pode encontrar mil homens trafulhas durante uma vida longa que corre sempre o risco de ser enganada. A fé do coração feminino está muito próxima do infinito. Conhecendo um homem verdadeiramente bom ela fica imune a essas possibilidades. O poder da comparação torna-se esmagador.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Aprendiz

Ele era forte com as fracas e fraco com as fortes. Por vezes precipitava-se na catalogação. Não dava, no entanto, conta do logro, tal era a sua importância para umas e para outras.

Sem Abrigo



Arrefecem-me os pés
mas o meu sofrimento é nulo.
Os pensamentos são escaras abertas
mas o cérebro é insensível à dor
e o meu sofrimento é nulo.
Um pássaro pousou-me no ombro,
talvez o meu ombro descanse nas suas asas,
um silêncio
estudando-me as rugas
com o bico conclui
que o meu sofrimento é nulo.
A morfina vem à mão
mas não serve o sono
que implica acordar,
recordar.
Mais vale o trucidar miúdo
das mós
que a surpresa do gume das facas.
Assim o meu sofrimento permanece
nulo.

Fingidores

Um dia entrarás pela porta e fingirei que não te conheço. Fingirás de volta que não me conheces mas no teu caso será verdade.

Voz



Recusei o monólogo. O silêncio também é uma voz.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Um Visitante

Durante um ano escreveu um blogue para um único visitante. Chamou-lhe "Conta-corrente".

Força


Deitada na cama tudo se tornava mais claro, mais fácil. Ouvia a voz de vinho do fígado queixar-se que sendo a morte certa não seria preciso morrer com tanta força. Mas agora era tarde.

Conflito

Ele fez-lhe uma proposta mas um conflito de desinteresses impediu-a de aceitar.

Seara com Corvos





Um dos últimos quadros de Vincent Van Gogh, aqui numa versão de Luciano Duarte, o quadro que durante anos esteve pendurado por cima da minha cama e que entendia como uma profecia sobre a minha vida: um caminho no meio do nada terminando em lugar nenhum. Fui percebendo, no entanto, que todos os caminhos são assim e o que importa são as histórias que vamos inventando, vivendo, ao longo do percurso.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Clepsidra



Estou à porta.
Vejo um tempo
em que as portas eram de ferro,
eram muralhas de granito,
eram aço impenetrável
que eu com um gesto, uma ameaça,
uma brisa de respiração
escancarava, aríete infrene.
Mas esta não é uma porta de ferro,
de aço ou de granito.
Nem de madeira, vidro, vento.
É um espelho fechado
que me aventa a incapacidade.
Uma clepsidra que vai roubando
a água corrente do rio
de sangue feito fio tão fraco,
tão fino, rio feito de sal e rugas,
carne derrotada ao sol.
Estou à porta,
na clepsidra
o tempo secou.

Nem tão bom nem tão mau

Alguém um dia, com boas intenções, me disse que nada seria tão bom ou tão mau quanto eu imaginaria. Valeu como verdade muitos anos. Mas a idade ensina a regular o botão do volume das expectativas. O realismo acaba por nivelar os picos de optimismo e pessimismo e atenuar o ritmo da sua intermitência.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Cisões



O oposto de uma decisão é ainda uma decisão, uma decisão de sentido contrário. Uma indecisão é um intervalo mais ou menos precário entre decisões. Há quem consiga viver muito tempo neste limbo. E há quem viva num pingue-pongue de decisões de sinal contrário.
O que dá a ilusão de se evitar a precariedade.

12 Years A Slave



Fui ontem ao cinema ver o “12 anos escravo” e fiquei desmoralizada. Não com o filme, que correspondeu às minhas expectativas que eram muito altas, mas com a reacção que despoletou nas pessoas que assistiram à sessão.
O filme é do melhor que se pode fazer nesta arte. Mas não é um simples filme de entretenimento. Ao entrarmos na sala espera-nos um bom par de horas que irá fazer-nos meditar sobre a Humanidade. Um par de horas que nos vai deixar arrepiados, horrorizados, perplexos.
Mas chegada à sala reparo que a fila imediatamente atrás de mim está repleta de pessoas com gigantescos baldes de pipocas. Comer e assistir às atrocidades que o ser humano inflige a outros seres humanos não é compatível. Será que esta gente não sabia ao que vinha? Será que pensava que era um filme de acção tipo “Mercenários II”?
Infelizmente a minha dúvida dissipou-se quando uma senhora muito elegante se sentou ao meu lado com uma caixa cheia de nachos e molhos de cheiros intensos. E mascou, e triturou e insalivou os ditos snacks durante a totalidade da 1ª parte. Ao intervalo tive de mudar de lugar. Não antes sem ouvir da respeitável dama que deveria ser proibido filmar histórias como a deste filme. Pois que indispõem bastante um estômago sensível como o seu e para além do mais já nem existe esta realidade e bater nesta tecla só irá incitar à violência por parte “destas pessoas”. Não de todas, apressou-se logo a emendar, mas sim de alguns, os mais rancorosos, supõe-se...
Vários são os equívocos deste raciocínio. Este não é um filme sobre racismo. É um filme sobre escravatura. Sobre direitos humanos. Sobre o que é imutável e está acima da Lei, qualquer que seja a época ou o lugar. Sobre a ética e sobre o dever. Coisas tão essenciais que parece impossível poderem passar ao lado de quem assiste ao filme. No entanto aconteceu: o público ao olhar para o écran durante duas horas viu-se ao espelho e não se reconheceu.
Nem as notícias profusas nos jornais, nos noticiários, nas redes sociais dando conta de que o tráfico humano é o 2º mais lucrativo a nível global (logo a seguir ao das drogas) fazem eco na consciência das pessoas respeitáveis que assistem a este filme, deglutindo incessantemente e produzindo ruídos incomodativos pela mastigação de acepipes altamente crocantes.
Que não se filme tamanha barbaridade! Que não se veja o que o ser humano consegue fazer ao seu semelhante. Aqui a cor da pele é secundária. São seres humanos escravizando, torturando, massacrando outros seres humanos. Neste caso particular a Lei estava do lado dos torturadores. A Lei mudou em muitas partes do mundo (não em todo certamente) mas mesmo tendo mudado a Lei o ser humano continua igual.
E no final os comedores de pipocas e afins levantam-se de estômago cheio e bem aconchegado e pode ver-se os guardanapos besuntados, amarrotados, deixados no meio do chão.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Um Poema Para Nós

Não há um poema para nós, meu amor.
As palavras são dos olhos,
da língua que escreve
directamente na pele
com tinta invisível,
decifrada. Decreta
que este planeta, o corpo,
é a nossa casa.
Os poemas são
da fonte da carência
ali do quarto ao lado,
nascem tristes
transfigurados, melancólicos,
meu amor,
procuram amparo, algum consolo
combalido, uma nervura.
Aqui as palavras saltitam
pelas pernas como lebres
que correm a matar a sede,
entrelaçam-se nos dedos
pulam das mãos para as mãos
dançam à saída dos lábios
e à entrada
e não ficam, meu amor.
As palavras vão e vêm,
e vão.
As palavras, meu amor,
num poema demoram
como lágrimas.
Não me peças um poema,
meu amor.
Para nós há a vida.

Águia

As águias não deviam ser aves
mas corações aduncos e com asas:

se olhares à flor dos campos e das casas
sentes o peito maior do que a amplidão:

se alguma coisa nasceu para voar
foi o teu coração.

Carlos de Oliveira

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Stalker



Não cheguei a este filme por acaso. Se assim tivesse acontecido não passava dos primeiros quinze minutos. O ambiente do quarto que se pode ver na primeira cena é tão opressivo, as cores tão sombrias, as personagens tão desesperadas que dá vontade de fugir, desistir e passar a outro filme mais fácil. Porque este é difícil. Stalker de Andrei Tarkosky, filmado na Rússia em 1979.
Stalker faz parte de um livro de crónicas sobre cinema de Pedro Mexia, por isso vinha bem recomendado. Mexia escreve a crónica Zona como quem pega numa laranja engelhada e lhe espreme o sumo, retirando do fruto a sua essência. De maneira que se querem ler um resumo do filme que é melhor que o mesmo comprem o Cinemateca.
A maior parte dos filmes são como bolas de sabão. Duram uns minutos mais que as bolas de sabão mas acabam do mesmo modo, num segundo, e não deixam recordações.
Este filme é o oposto. É melhor depois de acabar. Porque depois acaba o sofrimento das imagens e ficam as memórias, as reflexões, as perguntas.
Stalker é um homem. Mas será um homem? A mulher no fim do filme diz que ele não é deste mundo. Ele, numa das cenas finais, diz não entender as pessoas. “Estas pessoas, estas pessoas”, lamenta-se exausto e desaustinado, deitado na cama onde a mulher o tenta acalmar, “não percebem nada, não sentem nada”... Diz num desespero que mantém ao longo da história. Será um extra-terrestre, um anjo, um louco? Um pouco de cada coisa?
Ele ganha a vida como guia. Levando as pessoas à Zona. A Zona é um sítio proibido, um mistério, o mistério central do filme.
Vão com ele, no início, um Professor e um Escritor. O Professor, pragmático e ambicioso vai à procura da fama, diz o Escritor. O Escritor, cínico e desiludido vai à procura de inspiração. E pelo caminho discutem um com o outro. Os actores conversam a um ritmo tão real que parece que alguém filmou às escondidas três pessoas a falar e não actores que têm como missão entreter espectadores que pagaram o seu bilhete. A intensidade dos olhares daqueles homens impressiona.
Stalker é o único que conhece a Zona, os seus perigos, as suas armadilhas, os truques para lhe sobreviver. E no entanto é o único que tem medo. Está apavorado e tenta sempre que um dos outros vá à frente. O medo dos dois homens que seguem o Stalker é controlado, por vezes é substituído por desafio. Mas nunca nada acontece apesar dos avisos desesperados do guia.
O Escritor e o Professor vão atraídos pelas promessas da Zona, onde os desejos se concretizam e no entanto pouco acreditam. Pouco ou mesmo nada.
Eles caminham, caminham, descansam, dormem, caminham, atravessam túneis infindáveis, guerreiam-se, descansam e voltam ao café de onde partem.
Os dois não crentes saem mais serenos, parecem mais fortes. O Stalker vem mais crente mais fragilizado.
Se a Zona é um santuário do divino, um local onde a fé reina que mensagem é esta que o realizador tenta passar? Da fé receberás a paixão mas nenhuma recompensa?
Mexia acaba a crónica com uma frase que parece resumir a moral da história: “ Pode ser um poema à crença, que nos garante que esperança e desesperança são duas formas de espera, e que para ambas há uma resposta.”
Não vejo resposta nenhuma no filme. Só vejo perguntas. Creio que Tarkovsky conseguiu o impossível: ser mais pessimista que Pedro Mexia.
Stalker no final é o homem mais derrotado dos três que entraram na Zona. O mais infeliz, e a esperança de que fala a sua esposa enquanto ele agoniza na cama é qualquer coisa muito próxima da angústia.
Na cena final, a filha, uma mutante, entrevada, faz mover copos em cima de uma mesa com a força da mente. Será isso a esperança? Servirá para algo mais que partir copos?
Mas uma pergunta pode ser mais importante que muitas respostas.





sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Se O Martinho Da Vila Fosse Uma Senhora

Já gostei de labregos,
já gostei de doutorados
já gostei de grandes egos,
de doidos mal diagnosticados.
Já gostei de gays,
já gostei de poetas,
hipocondríacos frágeis,
e de anacoretas ascetas.

Procurei em todos estes tipos
a felicidade
mas tive pouca sorte
fiquei na ambiguidade.
Foi começando bem
mas o final foi forte.

Já gostei de mentirosos
já gostei de agarrados
já gostei de ansiosos
já gostei de charrados,
já gostei de narcisistas
políticos demagógicos
já gostei de artistas e
de ateus paraplégicos

Procurei em todos estes tipos
a felicidade
mas tive pouca sorte
fiquei na ambiguidade.
Foi começando bem
mas o final foi forte.

Já gostei de católicos,
de gente dos Açores,
já gostei de alcoólicos,
malta pedindo favores.
Já gostei de aldrabões,
gostei de manequins,
de todos guardei lições,
até gostei dos Delfins.
Já gostei de cornudos,
já gostei de escrivães,
gente com olhos bicudos,
gostei de donos de cães.

Procurei em todos estes tipos
a felicidade
mas tive pouca sorte
fiquei na ambiguidade.
Foi começando bem
mas o final foi forte.

E por fim lá apareceu
um gajo decente e jeitoso
dizendo sou todo teu
desculpa se sou bexigoso.



Estar Sem Ti


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Dexter

Ontem vi os dois últimos episódios da temporada final da série Dexter.
Deitei-me furiosa com os guionistas com quem já tinha tido um “desaguisado” na sexta temporada mas com quem havia feito as pazes na sétima.
Acordei, no entanto, apaziguada.
Não foi um final feliz. Não foi um final fácil. Houve muitas inconsistências e incoerências nos dois episódios finais. Nota-se a luta dos guionistas para conseguir um final digno para as personagens principais. Tentam moralizar.
Quanto a mim o Dexter que tinha vivido entre dois mundos, o mundo dos humanos e o mundo dos psicopatas, na linha que separa os dois mundos, acaba por passar para o mundo dos humanos, deixando o sua condição de psicopata. Isto vê-se na motivação da última morte, do seu último assassinato por vingança pura, uma motivação totalmente humana.
Dexter no fim é promovido (ou terá sido despromovido?) a ser-humano. No fundo conhece finalmente o mundo daqueles seres que achava tão diferentes de si. E aí, surpresa das surpresas, não é tão fácil assim! Sentir! Ter emoções, sentir desgosto, culpa, angústia, amor! E afinal em comparação com estas dificuldades humanas, ser psicopata, matar friamente, ter vida dupla, tudo isto era canja.
O Dexter humano torna-se demasiado humano. Sobrevive. Mas conseguirá viver?

Irredutível Combatente




Uma ervilha rigorosa
ingurgitando-se de luz
pulsa doida e dolorosa
numa direcção conduz
o resistente guerreiro
convidado a capitular
teima obstinado e triste
a espada não entregar.
Mais empenhado insiste
na vitória, nesse prémio
depois do cessar fogo
para lá de carente, abstémio
abraça abnegado o prólogo
sem se deixar desarmar.
Dizem que a guerra acabou.
Ele não pode acreditar,
tem uma ideia, é escravo
indisponível p'ra parar.



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Modigliani

Um Modigliani de Luciano Duarte.

Sombras

Não há luz sem sombras.

Um Roubo

Toda a memória é um roubo. Um roubo ao esquecimento que tudo reclama. Por isso mais vale pegar nas palavras que ficaram no ar, captura-las numa memória. Forjada e feliz. Guarda-la dentro de um baú-cofre para marcar o tempo como quem escreve numa árvore a canivete: dois nomes, uma impossibilidade.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Um Casal Execrável

Meses depois, após muitos e complexos preparativos, sentiram que estavam finalmente prontos. In "Um Casal Execrável" de Edward Gorey

2046






É um comboio,
ou um quarto de hotel.
Porque uma cama
pode ser uma viagem.
Uma busca
pode ser
um refúgio,
um anseio
pela memória
perdida.
Em 2046,
no comboio,
no quarto,
que Natal não é
quando uma mulher
quiser,
mesmo sendo Natal,
vai aprender
a menina Bai.

Veneziana


Quase que acordas
todas as manhãs.
O sonho dói,
o dia dói.
Vais à janela
E a persiana encrava
como o passado
à tua frente
impedindo o sol
de entrar no quarto.
Uma veneziana
empanada,
o passado que não sobe
nem desce
nem deixa
ver a gente que
já lá em baixo
segue a sua vida.



domingo, 2 de fevereiro de 2014

2046, Wong Kar Wai


“ Antigamente
quando as pessoas tinham um segredo
que não queriam partilhar
subiam a uma montanha,
encontravam uma árvore
e faziam um cova no tronco.
Murmuravam o segredo
na cova
e cobriam-no de lama.
Assim o segredo
não seria revelado.”


Sabem o que é poesia em imagens? Então descubram Wong Kar Wai.
2046 é um filme sobre o desejo de recuperação das memórias (“ Todas as memórias são rastos de lágrimas”); sobre o amor e sobre a escrita. Conta-nos a vida de um escritor e ao longo da história vamos percebendo como a inspiração biográfica vai encontrando caminhos para se manifestar nas  suas ficções.
Não há muito mais a dizer de 2046 pois as imagens são tão belas que só mesmo vendo se acredita.

Vila Real

Há quem tenha o coração partido por um homem ou por uma mulher. Eu trago o coração partido por uma cidade.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Zumbido

Agora que já não te falo
as palavras flácidas
aplacadas
calam-se
colando-se
ao pesadelo da boca.
Perplexas roçam os dentes,
atónitas,
denunciadas ao travão
do grosso músculo
da língua.
Rezam num silêncio de chumbo
a um deus ausente
rogando um alimento de carência
pedindo sempre,
combalidas
num zumbido de atroz
sincronia.


O Coração do Coração