quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

12 passas





À décima segunda
badalada
morro mais
uma vez
e já nasço
no óbvio Janeiro.
Os mesmos Domingos.
O velho Verão.
As semanas costumeiras.
Doze passas
para me lembrar
que tudo fica igual
na temerária
teia do tempo.
Até que um dia
o sangue muda
o futuro dispara
e o acordar
não será neste mundo.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

vingança


(Anthony Murphy, 1999)


Um dia vou esquecer-me
do teu nome.
Um dia ficarei
surpresa
com a ausência
do calafrio
ao passar o quiosque,
passarei sem apressar o passo,
sem reparar nos jornais
que saíram de manhã.
Um dia será apenas um dia qualquer
sem relação
com o dia de ontem
porque o teu nome
não será mais que
um nome igual aos outros.
E um dia já nem vou notar
qualquer diferença na rotina
dos minutos,
das cervejas.
Tudo será apenas normal,
estável,
sem vento,
sem memória.
Um dia
vou esquecer-me
do valor
do teu nome.





cama quente



De tanto tapar o poema
mal posso respirar
se nele me deito
à noite
debaixo
de tanta colcha
manta
cobertor quente
tentando
libertar
o meu cansaço.
Por vezes aquece
mais
o poema nu.


BOARDWALK EMPIRE




Ao fim de 5 temporadas chega ao fim “Boardwalk Empire”, uma das minhas séries favoritas de sempre. Já não é a primeira vez que o digo mas vou repetir que o Steve Buscemi tem aqui o papel da sua vida e prova que não é preciso ter uma carinha laroca para se ser um grande actor. Aliás, Steve Buscemi é mais do que pouco atraente, chega a ser feio. E ainda assim compõe uma personagem que é um gangster gentil, Enoch Thompson, charmoso e absolutamente irresistível. Toda a história gira à sua volta. Nucky destaca-se dos demais criminosos pela lucidez, calma e desassombro. Para além do poder que tem e exerce ele conhece-se a si mesmo, está consciente. Por isso, antes de tudo, é o mais inteligente dos homens.
Na última temporada podemos conhecer o fim e o princípio da história. Vemos o Nucky criança e o Nucky jovem adulto a tentarem desesperadamente subir na vida. O Nucky criança quer trabalhar para ser recompensado com uma vida melhor. A vida, e os criminosos instalados no poder local, não se cansam de lhe tentar ensinar que essa não é uma filosofia vencedora. Mas é o Nucky jovem que em certo momento se vê confrontado com a escolha entre o Bem e o Mal. Para subir na hierarquia e ser promovido a xerife pelo Comodoro ele só tem uma hipótese definitiva e, em consciência, aceita-a. (Tudo menos a pobreza de onde veio. Assim se justifica o lema da série: “you can´t be half a gangster”)
O jovem xerife sabe que ao aceitar ser, mais do cúmplice, parte activa no pior crime do cacique local, está a abraçar o papel de criminoso a 100%, para toda a vida. O que lhe é imposto é um sacrifício humano. Promete nesse momento tomar conta da sua vítima, uma miúda de 13 anos, para sempre. No final da história , quando Gillian, internada num hospício, em desespero de causa lhe pede auxílio, ele vai visita-la. E oferece-lhe ajuda monetária, mas só isso, frisa bem. Que mais podia ele oferecer-lhe depois de lhe ter tirado o direito a uma vida normal? Ele sabe o que lhe fez, aquela promessa era vã.
E assim a vida faz um circulo completo e o final da história toca o o seu princípio. (Não digo mais para não estragar a surpresa)
Não posso deixar de fazer referência a outros actores que deram corpo a personagens secundárias de grande importância na trama.


Stephen Graha: Seria fácil resvalar para uma  caricatura de um mafiosos pois Al Capone tem uma imagem em público que é puro espalhafato. Mas essa é a persona que Capone inventava para tentar superar a mediocridade que lhe corroia a auto-estima. Ele chegou a uma posição de chefia não por ser especialmente esperto, particularmente forte, ou mais psicopata que os demais. Foi pura sorte por ter sido braço direito de Johnny Torrio, o mais zen dos chefes mafiosos, que não se importava de ter aquele labrego de riso alarve a fazer-lhe as rondas e as cobranças. Tivesse Al Capone sido membro do grupo de Nucky Thompson e não teria sobrevivido duas semanas. Mas para tudo é preciso sorte e Al Capone lá foi andando, entre linhas de coca e tertúlias com realizadores de Hollywood, despachando rivais tão depressa quanto colaboradores azarados, à conta de muito crânio esmagado por bibelots e outras bugigangas.

Michael Kenneth Williams: se eu fosse realizadora de cinema este seria o meu actor fetiche. Não haveria de fazer filme, série, anúncio publicitário ou vídeo clip em que este homem não entrasse. Chalky White é o mais fiel colaborador de Nucky Thompson. No final ele acaba como herói romântico, numa última cena tocante.

Marc Pickerin: Todo o casting da série é um sucesso. Terem escolhido este actor para fazer de jovem Nucky é a cereja no topo de bolo.
Naquele tempo o homem caminhava sobre a fina linha que separa o Bem do Mal. Na hora da verdade ele não teve dúvidas, fez o que tinha a fazer para cumprir a sua ambição. Recém-casado e apaixonado, sabia que iria desiludir a sua jovem esposa mas mesmo assim não houve hesitações. Ele tinha um caminho a seguir e fez o que lhe foi exigido sem contemplações. Houve uma vitima. Ele teve plena consciência de que essa vítima seria apenas a primeira.

 Gretchen Mol: A história de Gillian Darmody anda de mão dada com a história de Nucky Thompson. Ela foi o veículo que lhe permitiu a entrada para o clube do crime da cidade. O cacique local de Atlantic City, o Comodoro exigia cumplicidade para os seus peculiares apetites sexuais. O seu xerife adjunto tinha uma condição para ser promovido a xerife, com a agravante de ser despedido se não colaborasse. Gillian era órfã. Gillian tinha 13 anos. Gillian estava mesmo à mão de semear. Gillian é o destino ao qual vai ficar irremediavelmente amarrado . Nucky promete cuidar dela até ao fim. Ela tem um filho que é personagem principal nas duas 1ªas temporadas. Depois tem um neto. E o circulo fecha-se. No fim da série definha num hospício. Foi mutilada, retiraram-lhe o útero para lhe tirar a histeria como antigamente se acreditava curar as doidas. Faz um apelo ao homem que um dia, fugida do orfanato, a tentara ajudar: Nucky Thompson, que comprometido pela promessa inicial vai ao seu encontro. Mas é tarde, ela está perdidamente insana e ele apenas tem dinheiro para lhe oferecer. Gillian teve as suas razões para ter sido inimiga daquele homem. No fim foi a ele que recorreu e Nucky ali estava, horrorizado perante as atrocidades que ela exibia no corpo, no olhar ausente, percebendo que aquela morte em vida era totalmente da sua responsabilidade.





segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

fénix





A música vem do bico
como de uma flauta
numa chama tímida
que sangra,
uma marcha fúnebre,
mancha
sobre brasas vivas
esfriando
a culpa máxima
nas asas trémulas,
um segredo particular
num reino absoluto
sem centelha
de esperança.
Na pira arde
a certeza,
a condição:
retirar
o coração do mundo.






quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

caos

Dizer que não há acasos é tão estúpido como dizer que não há coincidências. O acaso faz parte da vida. O que não quer dizer que não haja um sentido para o que vivemos. Ordem e caos, duas linhas que se entrelaçam para nos prender, temporariamente, à vida.

explosivo

Na mão aberta uma granada detonada:
um coração.

sábado, 13 de dezembro de 2014

o mal


Edward Gorey


O grande mal
sabe ser pequeno
esconde-se
vigia
a gente banal
de cada dia.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

a vida feliz


Marco Santos
Violência doméstica, a sombra do diabo


Ser feliz,
eis o que sempre quis.
Quando nasci
prometeram-me
que seria um homem.
Cresci,
cresceu o mundo ao meu redor,
uma desmesura.
Cresceu barba,
cresceu a urgência
de ser feliz,
tudo o que sempre quis.
Veio a mulher,
baleia malhada
dando à costa,
dando as costas e a barriga
como sempre quis,
que feliz!
O desejo quase cumprido,
o cornetim de vitória
soprado em vão
e ela afundou-se
no oceano da vida,
o que quis,
ser feliz,
novamente um sonho adiado.
Tenazes apertando o craneo
tenebrosas,
contra à vontade
de ser feliz,
contra mim,
todos,
tudo.
O mundo
contra
o contrato
de ser feliz.
Não há juiz
que me impeça
a promessa
de ser feliz,
de ser o homem
que esperneia,
combate,
e quem ama
odeia,
vasculha,
persegue,
pirateia,
como bom caçador macho,
embosca,
rodeia
a mulher-baleia
que bloqueou
a profecia
prometida
e digo:
dá-me o que quero,
cabra,
ser feliz,
não me dás,
tiro-te a vida.

ausência






uma montanha
que é um lugar
onde não está
uma montanha
uma montanha
que é um abismo

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Pedra receosa




"Conheço as tuas obras: não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente!
Mas, como és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te."

 Apocalipse 3:15-16. 


nem frio
nem quente
morno
morno
esquivo 
ao amor
e ao ódio
morno 
morno
pudesse eu
vomitar-te
morno 
morno
conheço
as tuas obras
morno
morno
com fama 
de estar vivo
morbo
morbo
 

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

DIAS DE TEMPESTADE

DIAS DE TEMPESTADE  é um livro de poemas de José Duarte escritos através do método de Rasura. Passo a palavra ao autor para explicar de que se trata:

"O presente volume é uma obra de carácter experimentalista. Tomando conhecimento do processo de Erasure, que é uma forma de Found Poetry, decidi aplicá-lo a uma obra clássica: Moby Dick (1851)  de Herman Melville. O processo consiste no corte/apagamento de algumas palavras num determinado texto, em prosa ou em verso, e as que sobrarem são usadas para construir um poema. São retiradas palavras, frases, e às vezes, parágrafos inteiros, que são trabalhados visualmente na página, de modo a criar o poema e dar um novo sentido ao texto.
As possibilidades de criação são infinitas: cortar palavras com uma tesoura e montá-las numa página nova, usar um marcador e apagar partes de uma texto, usar um lápis ou, até mesmo, o computador. As palavras podem ficar na mesma posição em que estavam ou ser distribuídas de forma diferente pela página. O resultado pode ser variado: um novo sentido, uma nova história ou a mesma história, mas contada de maneira diferente. Cabe a quem está envolvido no processo perceber qual é o caminho das palavras.
Julie Judkins, num workshop sobre este método, chamou-lhe uma poesia da ausência."

Chamar à Rasura poesia da ausência é a velha história de ver o copo meio vazio. Se preferirmos ver o copo meio cheio podemos chamar-lhe poesia da colheita. No fundo é como quem apanha fruta num pomar. Implica olhar por entre as ramagens e descobrir, achar, o mais importante. Ou seja ir ao núcleo poético do texto e retirar, colher as palavras que interessam. E eis que do texto se extrai um poema, o fruto. (E como o pomar é alheio pode dizer-se que é um fruto-furto.)

Neste caso particular a matéria-prima e a perícia do recolector são tão boas que o resultado é um conjunto de poemas maravilhoso. 
Foi-me difícil escolher um poema como exemplo. Aqui vos deixo este:
( também podem conhecer mais poesia do autor visitando o seu blogue:aescritaemdias.blogspot.com, eu visitarei.)


XXI

Deixo atrás de mim faces pálidas
sinto obscuramente o metal sólido
falta-me a minha alma

obedecer
a um sofrimento cósmico
O tempo e
as águas são vastas.
               o meu coração pesado como chumbo
relógio parado
A baleia branca
                 Com sentimentos
humanos

o resultado final
é bizarro

talvez o mundo
a cruzar versos não tem
tempo

é louco ou está bêbado
-os deuses e os homens no meio
dos bosques não têm entranhas



experiência religiosa

vesti o hábito
de despir o monge
ó céus!

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Old Whore's Diet





Old Whore's Diet [feat. Antony Hegarty] - Rufus Wainwright from Want Two (2004). Footage from The Blood of a Poet (Le Sang d'un Poète) directed by Jean Cocteau (1930).




comida requentada
dieta de puta velha
faz-me levantar de manhã
faz-me levantar de manhã
dizer que te amo
desperta-me pela manhã
desperta-me pela manhã
assim vou vivendo
aqui e no Inferno
aqui ou no Inferno
vais precisar
de uma ajuda suicida
dieta de puta velha
vai bem com sangue de poeta
dizer que te amo
 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

solve et coagula

Sole et coagula, Wutwolf

Procuro
a fórmula para macerar a mágoa,
transformar o chumbo em língua.
Plano B,
à boa maneira finlandesa,
imergi-la dentro de caixas em água
e confiar no aviso de perigo:
Maldição.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Auriga




Era o tempo de aprender o que é um homem.
O tempo de aprender o que são mãos grossas de homem.
Voz grave de homem.
Segredos incrustados em rochas, o mar morou no alto das montanhas, as estrelas têm nomes e formam desenhos no céu da noite.
Era o tempo de saber tudo o que um homem ensina: xadrez, coragem, deslealdade, a recordação de um amor único.
Naquele tempo estive a ponto de conhecer um homem.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

sortilégio

Odalisca, Mariano Fortuny



Devia passar mais creme nas pernas,
massajar os cotovelos todas as manhãs,
escovar o cabelo contando até cem,
experimentar mais vestidos antes de sair.

Devia aconchegar os seios com as mãos
olhando-me ao espelho antes de dormir,
oferecer o tacto à pele mais escondida,
demorar-me onde a tensão me chama.

Porque o corpo é o único inocente.



domingo, 16 de novembro de 2014

Miss Mardle



A mulher madura que ama o homem fraco.
A mulher madura que durante 12 anos amou o homem fraco.
A mulher madura que viveu 12 anos de amor pelo homem fraco.
Sentiu o útero secar no meio das entranhas e não se importou.
Maior era o amor pelo homem fraco.
O homem fraco, toupeira para a luz que vinha aos olhos,
no final só viu o útero seco.
Casou e teve filhos de uma rapariga nova.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Bufarinheiro




Bufarinheiro, bufarinheiro
que fadiga, que fadiga
lufa-lufa, lufa-lufa
de bairro em bairro
rua acima, rua abaixo
p'ra mostrar a bufarinha
quero comprar (queres comprar?)
há quem queira, há quem queira
e funciona (está a funcionar)
quanto custa, quanto custa
não sei se poderei pagar
é barato, tão barato
um preço de pasmar
que fadiga, que fadiga
só ferrugem, só ferrugem
nestes ossos, são tremoços
bugigangas, bugigangas
tudo muito bom negócio
(quem não me conhecer
há-de comprar)
vamos todos rezar.






quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Escrita






Troca-me o tique de tédio
que torna o branco sujo,
a página pesada e preguiçosa,
o tempo enguiçado e quebradiço.
Prefiro o toque do violoncelo,
as notas entrecortadas por dedos
e então como a cobra descose
a pele furunculosa
assim removo a venda
e me liberto lançando
os olhos à luz
aliviados do vazio
da escuridão.

domingo, 9 de novembro de 2014

UM POEMA DE DUARTE MARQUES

Duarte Marques
(2006)


BRISA

Beijo o ar navegando.
Rasgo o cérebro com brisa.
Iaiai a brisa relaxa-me a cabeça.
Sou uma brisa.
A brisa é magia.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

abelha




Entrei
pela tua janela semicerrada,
caí no pote da mágoa,
roubei um pouco
(tens tanta, nem dás por isso)
do alimento,
dessa argamassa
para os meus tijolos,
cola das finas películas
que formam a fotografia final.
Um emaranhado de fios
invisíveis
que dão um casulo,
uma identidade.
Para ti de madrugada
fui mosca maldita
sem mel
(se bem me enxotas
melhor volto).
Não há abelhas
sem vício.

domingo, 2 de novembro de 2014

cabelos


shedding the past woman and tree with falling leaves, folk art


Em breve vou deixar de ter cabelo. Cai-me aos molhos. O que nasce, que também é bastante, não o faz a uma velocidade suficiente para repôr as perdas. O que desaparece tinha levado muitos anos a crescer até aos ombros. Como uma árvore que se despe de folhas, o corpo despede-se dos atavios. Quanto tempo me resta de cabelo?
O que sei é que em breve chegarei ao ponto em que olhando para trás tudo fará sentido. Só olhando do fim para trás se faz luz no que vivemos, como dizia o filósofo. Neste momento, ainda, olhando para diante tudo é nevoeiro e interrogações, algum cabelo, pouco, disfarçado no meio dos ganchos, dos chapéus. Por enquanto ainda consigo manter a ilusão de ser a mesma através de estragemas ou feitiçarias, como queiramos chamar. Mas quanto tempo me resta de cabelo? 
Não deve ser muito, já. Ao contrário do que muitos pensam o tempo existe mesmo. E acelera a grande velocidade no final.

sábado, 1 de novembro de 2014

NOITE DAS BRUXAS



vi-te
com olhos
alheios
olhos
suspensos
olhos
enucleados
olhos
desistentes
olhos
paralisados
com ávidos
olhos
e não te vi.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

mindinho



dedo mindinho
miudinho
dedo em riste
apontado ao rosto
é adivinho
sábio descobre
que te vejo
que te leio
meu viciozinho
solitário
se acontece
mais amiúde
é por te querer
por te ter
como ninho
como corda
para subir
o mal-andamoso
caminho.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

fotocópia

two men meet, Paul Klee



tão distante do original
fotocópia, fotocópia
cantas mal
não me entristeces
nem alegras,
bem tentas,
sobra a barba
onde falta cabedal.
Cresce, cresce,
faz-te à vida,
lança-te do beiral.
Voa, voa,
deixa a capital,
larga o regaço,
o ninho natal.
Tenta o canto longe,
longe  do leito fetal,
aparta-te do meu ouvido,
dá-me o silêncio, a calma,
leva a lengalenga abismal,
o marasmo  manso
das tuas lentas letras,
leva o bocejo venal,
leva o vento da ira
que me vem ao peito
se te oiço
na telefonia digital.


terça-feira, 28 de outubro de 2014

tirano


waiting-woman-detail-face, Paul King


Às vezes é preciso paciência para esperar. Outras é preciso paciência para não esperar nada. 
Comecei por te esperar um bocadinho todos os dias. Isso fazia-me sentir com mais energia. Adorava  aquele formigueiro do suspense a correr na pele, aquela tentativa de adivinhação a cada instante. Mas com o passar dos dias tudo foi ficando mais embotado. Como se tivesse tomado um bom analgésico. O tempo não passa de um bom analgésico. Chega-se a um ponto que já nada se sente. E a paciência para suportar tudo o que nos acontece, especialmente a ausência de movimento, torna-se ainda mais urgente e mais difícil.
 Deixaste de vir. Deixei de acreditar na alegria. O tempo instalou-se como um tirano brutal.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

terras perdidas





crow, ingrid blixtnar


Vai turva a memória
como um nevoeiro
invadindo os olhos
um grito que se ouve
de pássaro quase corvo.


Não é um corvo
porque não anuncia
nem vida nem morte,
apenas um estado
intermédio de fantasma
de vista baça.
É um quase corvo
fêmea
de canto mudo,
vem apenas medir
o pulso à doença
e, perdido, fica
a velar o animal, doente.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

cavernícula moderno








Uma caverna calafetada
peles,
caça,
botas,
uma invejável caraça,
mocas úteis,
mamutes de marca,
troféus e presas.

Ah troglodita moderno
quase vampiro,
quase  terno
de gestos e palavras
quase vesgo,
de olhos pequenos
cegos
e vivos,
vorazes
vencedores perdidos.

ah troglodita, troglodita,
aprecias a fraterna comandita,
esse clube quase careca
da vil carica,
cavernícula troglodita
tão moderno.












quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Grelha


ilustração de KEN WONG: MULHER COM CORAÇÃO  


Uma fogueira ramificada
foge até ao céu em catadupa
aquece a grelha que há no tórax
assa a pele à queima roupa.

Breve, breve
deixa de doer
breve, breve...




indomável



Parece-me que a fonte está a secar. Nem sei bem se é um alívio ou uma tristeza. Posso pressenti-lo, primeiro porque desapareceu aquela ansiedade imperativa de deixar sair as palavras. Depois é aquela esperança indomável que já não está cá. 
Quando se domina um cavalo selvagem ele continua a ser um cavalo, dócil e nobre. Mas domar a esperança é transforma-la numa espécie de touro mecânico. 
Foi à garupa da minha esperança indomável que subi ao pico da mais alta montanha. E toda a gente sabe que é no pico de algumas montanhas que certas palavras se podem encontrar.

domingo, 19 de outubro de 2014

Charulata




A vida é ritmo, Charulata,

ondas

dança,

marés,

chuva,

soluços de lágrimas,

caracteres de escrita,

ordens do coração.

Mais olhos que barriga

Os teus olhos são o teu dono,
dominam-te.
A tua barriga capataz.
Decepado
escapas às ordens,
não há massa sem mãos.

Homem Invisível




Tenho pavor
das despedidas,
facas a despertar
o sangue,
a desatar os nós
que prendem a vida.
Não digo adeus.
Minto e entro no corpo
do homem-invisível.







aroma



A tua ausência é um aroma.
Por vezes encontro
uma pedra entre palavras
e sento-me
um bocado a descansar.
Vejo faiscas chispando
nas tuas mãos em concha
contra as curvas
do meu peito,
vejo a tua boca na minha
murmurando
em dialecto de beijo
uma reconciliação.
Vejo o que não li.
No intervalo de pedra
entre as palavras,
ó Escritor de todas as histórias,
reino eu.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Testemunha




Às vezes dou por mim a pensar que o acontecimento foi uma fantasia da minha imaginação. Uma coisa sonhada. É uma dúvida legitima, já o Filósofo teve de considerar o sonho para desenvolver as suas deduções célebres. Pode ter acorrido, durante o sono, e por um lapso mental de extrema raridade, o arquivamento da memória sonhada junto das memórias reais. Então lembro-me de ter acontecido mas, em boa verdade, não posso garantir que assim seja.
Se por acaso tivesse de, em tribunal, dar testemunho dos factos, não teria uma evidência, uma prova concreta que pudesse apresentar perante um juiz ou um júri que corrobasse a minha história. Não ficou qualquer vestígio. Teriam, os intervenientes do processo penal, de confiar na minha palavra. Talvez pressentissem a hesitação na minha voz, uma fragilizada convicção e me condenassem por perjúrio. Se adivinhassem poderiam ver esta lembrança desvanecida. Uma recordação que inicialmente era como um filme, com movimentos, gargalhadas, diálogos, discursos completos, todas as palavras. E agora é apenas um conjunto de imagens isoladas como fotografias que aparecem esporádicas e desirmanadas, em dias separados por várias semanas e que apenas me permitem adivinhar uma história muda. As vozes ausentaram-se. Os lábios aparecem sempre contritos. Ora zangados, ora tristes, soprando um silêncio devastador, como um mar imparável.

criptograma





Encriptei-te nas palavras
para te reter camuflado
exercendo o monopólio
de te ler no meio delas
opaco para os outros
transparente para mim
um código antigo
desvendado na carne.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Coração carbonizado





Se tocar-me era sujar as mãos
então não me tocaste
e as mãos permaneceram limpas,
lindas,
lacrimosas,
mapeadas
de um destino
que não se cumpriu.



Mãos imaculadas.
Pendentes dos braços,
escondidas em luvas,
trincheiras de uma guerra
sem um único combate.
Versão softcore
de um coração carbonizado
em solitário palpite.







segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Fruta de Maria




Pelo segundo mês consecutivo, o insólito aconteceu na pequena aldeia de Freixo de Tábua à Cinta. A primeira noticia que demos conta aconteceu quando Dona Maria dos Prazeres encontrou um envelope com quatrocentos e cinquenta euros à saída da estação dos correios. O que surpreende não é a ocorrência mas sim a atitude de D. Maria que resolveu dirigir-se à esquadra e compelir os agentes da autoridade a encontrar a proprietária do dinheiro e devolvê-lo na sua presença.
Hoje, representantes da conhecida marca de refrigerantes e sumos de fruta, KomKal, visitaram a aldeia e mais concretamente o quintal de D. Maria dos Prazeres na tentativa de estabelecer um acordo comercial de exploração da nova espécie de fruto que apareceu.
Várias fontes garantiram à nossa redacção que se trata de um autêntico milagre da natureza pois o fruto permite a quem o ingere libertar-se de toda a azia espiritual e amargos de boca que possam estar a sentir. Dizem que tem um aspecto entre uma romã e uma melancia e chamam-lhe “Romaria”.
Um representante da Komkal confidenciou-nos que já existe um slogan para o lançamento dos sumos desta fabulosa fruta: “Tomar ao pequeno-almoço Romaria evita a inveja todo o dia!”
Entrevistada pelo nosso repórter D. Maria relatou-nos como se apercebeu de que tinha surgido uma fruta nova na sua horta: “ O meu Jaquim pediu-me a sobremesa e eu deu-lhe uma coisa destas que até pensei que era uma romã estragada. Em vez de me dar um enxerto de porrada, como habitualmente, ficou a rir, e eu disse, ó Jaquim e se fosses dar uma volta ao bilhar grande e ficasses por lá para sempre? E ele abalou e nunca mais o vi até hoje. É foi aí que percebi que a fruta era um milagre de Nossa Senhora de Fátima”.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

OS FACILITADORES



Este livro impressiona. Uma coisa é suspeitarmos de ligações duvidosas entre o mundo da política e o mundo dos negócios com os advogados como ponte (sim, estou a usar um eufemismo), outra coisa é ver tudo explicadinho ao pormenor. É como observar uma necrópsia de um polvo gigante dissecado ao centímetro. Uma coisa é imaginar um polvo por fora, outra é vê-lo por dentro.
Ainda vou no 1º capítulo. Não consigo avançar depressa. Nem o tempo mo permite nem a a leitura é fácil. Mas apesar da dificuldade, do incómodo que fica com a percepção de uma realidade que não é nada benigna, não deixo de ficar feliz por estar a ler este livro.
Finalmente surge uma esperança de que estejam a surgir na sociedade pessoas, e melhor ainda, jornalistas, que se interessam por investigar e divulgar este assunto tão crucial para a nossa vida presente e futura. Porque parece que temos vivido um tempo de aceitação, de resignação e de desistência em relação ao “estado das coisas”. Eu vi a chegada deste livro como um ponto de viragem. Sei que “Os Privilegiados” vieram primeiro mas suspeito que este livro seja mais importante ainda.
Compreendo a opção do autor de não ter ligado os pontos, não ter um capítulo de conclusões. Fez muito bem. Porque as pessoas têm de ter a liberdade de quererem ver ou não quererem ver. A metáfora dos pontos que se unem é muito boa. É como aqueles livros de crianças que são de colorir. Não é preciso ser muito inteligente, basta ter vontade, para unir os pontos e formar uma imagem. Está tudo lá. A população tem de chegar a uma conclusão: se quer continuar a viver assim ou não.
E não importa muito, a meu ver, se “ o referido sistema de correlação entre o poder político, as sociedades de advogados e os interesses empresariais funciona como ordem espontânea (grown order) ou uma ordem construída (made order) (…).”
O que interessa é que as coisas como estão só interessam a um grupo muito restrito de pessoas. E aquilo a que chamamos Democracia na prática não existe por estar totalmente pervertida em favor desses particulares interesses.

Muito perspicaz e lúcida noção do autor de que o Homem necessita de padrões para conseguir sobreviver ao caos. Sim, é verdade, mas para isso se inventou a literatura e em particular a poesia. Para compreender o mundo, seja o natural ou artificial, temos de usar a razão e o espírito cientifico. Para nosso bem. E aqui entra o trabalho jornalístico de Gustavo Sampaio, que é objectivo, minucioso, exaustivo, corajoso e muito bem escrito. Um trabalho com todo o mérito. Uma pérola monumental.
Um livro completamente imprescindível.

fogueira




que rara chama
que parda  lenha
 que bizarra brasa
que ignara  garra
que corrosivo carvão
que obsessivo batuque
faz arder esta fogueira?

terça-feira, 7 de outubro de 2014

abraço




O vestido levanta
no entroncamento do corpo
e olhas com os dedos
a humidade de veludo
entre veredas e vales.
Quando a água vem ao ventre
a boca também vê
também sente.
E logo te escondes
afundado
por entre os montes.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

a minha fé





Depois da esperança esfarrapada
aposto as minhas fichas na fé.
Uma fé sem dono.
Uma fé em bruto.
Uma fé cavernícola.
Uma fé nua.
Uma fé sem rédeas.
Uma fé de olhos no chão.
Uma fé capaz de tourear
o desespero
sem bandarilhas.
Uma fé a cavalo
da garupa de um lobo.

O Misógino Subtil




Há homens que se dizem peritos em mulheres. Dedicam-se a descobrir os segredos do prazer feminino. As variadíssimas zonas erógenas subtilmente escondidas na pele, o ponto G, os aromas mais atractivos, as variantes do discurso mais chamativas.
Outros, no entanto, inteligentes, especializam-se na arte de ofender. Utilizam o ultraje como quem maneja uma espada e procuram atingir aquele que se poderia intitular de Ponto O, ou seja, um ponto de localização obscura na alma feminina, que quando tocado é capaz de provocar a ofensa máxima. Não deixa de ser um bom e eficaz método de compensação freudiana. Eles sabem, inteligentes, que uma ofensa é mais difícil de esquecer que uma carícia.


sábado, 4 de outubro de 2014

Veterinária




Não há poesia alguma
na agulha que desce
pela carne a baixo.
A pele doí-se
o corpo reage
o cão cura-se.
Mas há um sorriso
na cauda que abana
à saída.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Livro Proibido




Tinha o pressentimento que o livro me causaria sofrimento. Por isso não o comprei. Mas, sempre que o vejo nos escaparates das livrarias, chama-me. Tenho de lhe pegar. Ler o resumo da contra-capa, o título, o nome do autor, tocar-lhe e acariciá-lo. Já pensei até em levá-lo só para o ter na minha estante, junto com os outros. Só para olhar para ele, sentir que a minha colecção estava a ficar mais composta. Mas temo o seu poder de atracção. Certamente que se ele estivesse ali, à mão de semear, não me contentaria em contemplá-lo apenas. Primeiro iria abrir uma página ao calhas e leria uns parágrafos. E sentiria uma dor indefinida, uma impressão desconfortável, uma aflição. Se uma frase falasse de um rosto, de uns olhos ou de um chapéu, iria reconhecer de quem se tratava e isso seria inconveniente e angustiante. Seria tão constrangedor como entrar sem querer num provador de roupa de uma loja,por engano, e apanhar alguém com as calças na mão.
Não deveria ser capaz de decifrar os enigmas do livro. Mas por um estranho acaso, ou  pontaria no sentido do azar, veio parar-me às mãos o código que permite resolver os criptogramas encerrados no contexto. E assim o livro tornou-se claro e aberto à minha compreensão o que faz a sua leitura, como direi, emocionalmente desafiadora, ou mais simplesmente, penosa.
Conhecendo-me como conheço sei que dos pequenos excertos dispersos acabaria por ler o livro de uma ponta à outra e provavelmente chegaria ao fim para voltar ao princípio, repetindo a dose. Sim, sou masoquista a esse ponto.
Do pouco que li hoje, senti que estava a ver-me a mim mesma vestida da alma do autor. O peso do silêncio, a necessidade de evidência documental do fracasso, a espera na rua em vão, a esperança estéril, a incapacidade de interromper um sentimento sem sentido, o desespero da perda recalcado com requintes de contenção, a solidão esmagadora. Os pormenores, as ruas, as luzes, os automóveis, como se fossem adereços da minha própria história. Como se eu estivesse estado lá. Como se pudesse entender completamente tudo o que estava escrito.
O livro não me dá espaço à imaginação e à dúvida. A sua clareza torna-se esmagadora.
Como se o livro fosse uma espécie de máquina do espaço-tempo e me transportasse para dentro dele e me encurralasse. O meu medo é não mais poder sair.
Estive com ele na mão alguns minutos. Cheguei a dar dois passos em direcção à caixa. Mas recuei. Por hoje salvei-me.




quinta-feira, 2 de outubro de 2014

um alto final



O tempo já correu
tudo o que havia
a correr

e agora vai devagar
para baixo
degrau a degrau

claudicando

tremendo

desaguando

de um pequeno parto
intermitente
em sentido reverso
cada vez mais longe
da luz.


o tempo tem
por vezes
o capricho
de dilatar
o fim


o tempo é
quase todo
um final
muito alto.


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Apneia do sonho



Por um momento
ou dois
deixo de respirar
a imagem congela
o sonho pára
as árvores já não correm à janela
espero uma palavra
ou duas
tudo se suspende

e então

a palavra vem
respiro uma partícula
e as minhas mãos
fecham-se
como pássaros
que evolassem.




segunda-feira, 29 de setembro de 2014

POÉMICA





Poémica será o meu próximo livro de poemas. Nele constarão os poemas escritos por mim em 2014 que têm vindo a ser publicados neste blogue.

Poémica é um estado de alma, a manifestação de uma ausência. Uma forma, de sentir, de estar, que consiste na confluência de dois opostos contraditórios. Por um lado um excesso que transborda e por outro uma carência, uma privação e uma busca sem solução. Podemos, se quisermos, fazer um paralelismo com os estados anémicos do sangue em que existe um aumento da fase líquida em  detrimento de um certo elemento celular, os glóbulos vermelhos. Estar poémica é sentir uma falta que leva a uma sobrecarga de sentido contrário e que pode vir à superfície sob a forma de poemas. Escrever não é, nem a doença nem a cura, mas um meio que permite a observação do Estado Poémico e de um certo tipo de sinais: os poemas.

domingo, 28 de setembro de 2014

O Pé




Do pé à mão
é funda a distância,
da mão à boca
é pouca.

Trocava de boa fé
a mágoa pela mão,
a boca pelo pé.

Nem os dedos
vêem o ventre
nem o coração,
quando não quer,
sente.

Se a última palavra
foi mentira
o que fica no fim
é a ternura
pela frenação,
a pantomina,
a  fractura.

sábado, 27 de setembro de 2014

touro




A raiva a estalar no peito
como um touro
de olhos pisados
que não se deixa montar.
As costelas
são as grades
que não querem
(não quebram)
conter o coice.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

o obituarista




Escreve
na montra
a morte.
Faz desfilar
os nomes
em marcha
lenta
pelas páginas.
Quem lê
procura
não encontrar
o seu epitáfio.

conspiração de palavras





Olho a página em branco. Não posso deixar passar as palavras. Tapo a boca com determinação e força. Mas as mãos são pequenas e, embora a boca não seja grande, as palavras esgueiram-se como enguias escorregadias, pelos espaços entre os dedos.  Caiem no branco da folha criando uma mancha de tinta que tento não decifrar. Conspiram contra mim. Têm uma mensagem e querem alcançar o seu destino. Baniram do seu grupo a palavra "orgulho" e o seu líder parece ser a "determinação". 
Utilizo agora o meu discurso racional para as convencer a voltar atrás. Não posso deixar passar as palavras.
Não ouvem. Não querem saber. Só pensam na viagem. Têm pressa. Têm muita pressa. Não vão esperar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

zumbido alucinador




O silêncio
atacou-me,
torceu-me um braço
atrás das costas
como uma professora
estúpida
forçando-me a sair da sala.


Fiquei suspensa na ameaça
como uma criança
contrariada e obediente.


Vejo essa afiada  indiferença
que ainda me há-de furar
os olhos.

O silêncio,
esse zumbido
alucinador.



segunda-feira, 22 de setembro de 2014

UM POEMA DE EUGÉNIO DE CASTRO

CHUVA DE SETEMBRO


Chuvinha miúda... chove, chove,
Molhando a eira, inchando a uva...
Mãos d'anjo fazem rendas d'água,
Prendem-me aqui grades de chuva...


Chuvinha miúda...chove, chove
Nos pinheirais, dentro de mim...
Lembra-me agora aquela tarde
Em que também chovia assim...


Quanto chorámos nessa hora,
Que já de nós tão longe vai!
Chuvinha miúda... chove... chove...
Sonhos d'amor, chorai, chorai...

UMA MENTIRA MIL VEZES REPETIDA





"Qual quer que venha a ser o resultado desta minha ociosa e diletante tentativa para alcançar o sucesso, ele será tanto ou mais duradouro, disso estou convencido, do que aquele que obteria se me entregasse ao labor insano e pouco saudável de me privar das tardes de sol para ficar fechado em casa a escrever um livro de verdade. Com alguma sorte, aliás, serei um dia destes abordado por um dos jornalistas que, não tarda, estarão investigando o misterioso e instigante romance de Oscar Schidinski e, então, poderei até dizer que tive nas mãos um exemplar da notável obra, que o li por empréstimo e que estou na posição de assegurar, com absoluta certeza, a genialidade e a singularidade do livro do mestre húngaro. Com alguma sorte, repito, serei convidado para os  telejornais e programas de variedades, para debates e conferências, para tertúlias e magazines culturais, e poderei obter, deste modo, mais atenção do que aquela que conseguem alguns desses patetas  que se dedicam a  a escrever livros de grande profundidade existencial e originalidade estética, bestialmente aborrecidos e aos quais ninguém no seu perfeito juízo de dica mais do que uma devoção fingida e circunstacial."

Temos aqui o resumo da história do livro. Um homem sonha ser conhecido, deseja o reconhecimento público. Não está para se aborrecer a escrever livros. Tem uma ideia muito mais original. Inventa um romance. Literalmente. Sem o escrever. Ele elabora o objecto propriamente dito, com capa, com letras. E depois passa os dias a viajar pelos transportes públicos na zona do grande Porto a divulgar a obra, como quem não quer a coisa, aos outros passageiros. Lança o isco para um grande mistério. O grande enigma desta monumental obra chamada "Cidade Conquistada" do tal Óscar Schidinski. 
Tenta também criar uma mistério sobre a origem do próprio autor. Conta excertos do livro imaginário durante os vários itinerários que faz a cada dia. As histórias nunca são iguais pois ele vai inventando à medida que as conta. Sempre na esperança de se tornar famoso através da farsa. Através da falsa obra prima. Da mentira mil vezes repetida que não se tornará nunca verdade mas em algo muito mais proveitoso: uma mentira apetecível.


Enquanto esta personagem sedenta de fama vai contando as suas peripécias no autocarro o autor propriamente dito, o Marmelo, aproveita a dica e escreve o tal livro imaginário, a Cidade Conquistada, fazendo as vezes do escritor húngaro. Podemos conhecer assim o livro falso, tornado verdadeiro para nosso gozo, que conta a história de outro homem, também ele escritor mas desta vez um mulato do Belize chamado Marcos Sacatepequez.


Marmelo aproveita ainda para contar histórias do próprio Marcos Sacatepequez, esse escritor ficcionado que pode muito bem ter sido inspirado na figura de outro escritor do mesmo nome mas neste caso um poeta hondurenho, como por exemplo o caso do famoso Homem-zebra.


O livro é uma corrida. Uma prova disputada entre o escritor. Manuel Jorge Marmelo, e a personagem- narrador, que parece uma outra versão de si próprio, pelo reconhecimento público, a metafórica cidade da fama. Um conta uma história, escreve um livro de verdade. O outro inventa uma mentira e repete-a até à exaustão. Quem ganha? Parece-me que a resposta é clara.


"Uma Mentira Mil Vezes Repetida" foi a obra vencedora do Prémio Correntes d'Escritas 2014.
É um livro muito bem escrito e competente, daqueles que ganham prémios e que permitem aos escritores o desafogo para inventar outros livros verdadeiramente memoráveis como o que vem a seguir e sobre o qual já falei: "O Tempo Morto É Um Bom Lugar". Abençoado livro mais o respectivo prémio. Venham os próximos. Que sejam muitos.