Há
pessoas que vivem no mundo das crianças toda a sua vida. Não querem
crescer.
Brincam
com elas de igual para igual. Assim era Elisa. Com os seus 70 anos, a
sua cara enrugada e corpo em tonel, era a mais divertida companheira
que eu podia imaginar. Sempre de preto, olhos pequenos de toupeira,
tinha um hálito bom, um cheiro a sabão nos braços e a hortelã nas
mãos e a voz parecia que ria de contentamento. Era assim que ela se
realizava: sendo o centro do universo duma criança de 4 anos. Elisa
era a madrasta da minha avó materna. Vivia na casa da sua enteada
mais nova, a minha tia do Ribatejo que eu visitava todos os
fins-de-semana. Eu gostava de todos daquela casa: da minha tia, tio,
primo; e delirava com os animais que coabitavam na casa. Os cães, as
cadelas, os cachorros, os gatos, as gatas e suas ninhadas. Mas quem
fazia as minhas delícias era a velha Elisa com quem brincava de
manhã à noite sem conseguir aborrece-la um único instante. Para
mim ela era a Ti’Lisa. A minha maior amiga.
Aquela
mulher palhaça era viúva e não tinha filhos. Tinha gerado já
tarde um bebé que nascera morto. Era uma menina. Quando contava a
história vi-a disfarçar uma lágrima. O marido fora um polícia
severo que por vezes lhe batia mas por quem ela demonstrava uma
devoção misturada com respeito e ternura. Eu testemunhava o seu
amor cada vez que lhe pedia para me mostrar a caixinha em forma de
coração que pendia do seu grosso cordão de ouro. Elisa abria a
caixa, mas antes de me mostrar a cara sisuda do homem fardado de
cinzento beijava-a enamorada. Após ter contemplado a foto que me
alimentava a imaginação ela guardava-a novamente junto ao peito
nunca sem antes lhe voltar a depositar um longo beijo. Esses eram os
breves momentos sérios que tínhamos nos intervalos das nossas
brincadeiras. Com ela eu podia brincar aos cavalinhos, às bonecas,
aos médicos ou aos cowboys. Tudo me era permitido, até pentear-lhe
a sua longa cabeleira branca após desmanchar o carrapito, e
fazer-lhe umas tranças para que se parecesse com a minha boneca de
trapos favorita.
A
comida que me oferecia tinha um sabor mais delicioso. O pão com
manteiga que me dava à boca após molhar no leite e que eu mordia,
entre voltas de bicicleta à roda do quintal, tinha um gosto
especial. Com ela o meu apagado apetite devido às amigdalites
constantes disparava. Tudo me parecia mais interessante e alegre. O
mundo era um local maravilhoso.
Elisa
era a segunda mulher do pai da minha avó materna. Casara com ele já
depois dos trinta e aturara esse homem estoicamente. Ele não tinha
um feitio fácil. Era polícia num regime com uma autoridade severa.
Educara as filhas com mão de ferro. E as duas moças tinham-lhe medo
antes do respeito. Tratava a mulher com dureza. Ela era-lhe
totalmente submissa. No último ano da sua vida ficara acamado. Para
além das escaras dos diabetes, Elisa aguentara a senilidade ou a
loucura que o fizera não a reconhecer e trocar-lhe o nome pelo o da
sua primeira mulher: Maria do Rosário. Depois da sua morte abraçou
o luto para o resto da vida.
Depois
de mim, esta velha senhora foi amiga do meu irmão e dos dois netos
da sua enteada mais nova. A todos fascinou. Os únicos seres para
quem ela foi verdadeiramente encantadora. Quando chegava a puberdade
despedia-se de nós imperceptivelmente e dedicava-se à criança que
se seguia.
Anos
mais tarde fui chamada a visita-la no hospital onde agonizava com uma
doença terminal. O tumor do fígado adivinhava-se debaixo da pele
esverdeada em forma de uma saliência descomunal. Sofreu durante
semanas um calvário de náuseas e dores sem remédio nem alívio.
Uma expiação cruel na passagem para o outro mundo de uma personagem
secundária no palco da sua própria vida. E assim morreu Elisa da
Conceição, a estrela mais brilhante que na infância morava no meu
coração...
As memórias que trazemos connosco. Um belo texto e uma comovente homenagem.
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